Introdução
Foucault é um dos autores mais essenciais para um estudo estrutural acerca das relações de poder existentes dentro dos sistemas econômico e jurídico, bem como as consequências dessas relações sobre o corpo social, especialmente o corpo social tido como marginal, periférico.
O sociólogo e filósofo francês disserta acerca do conceito de ilegalismo, um conceito que lhe permite traçar uma análise mais profunda quanto aos limites entre o legal e o ilegal, entre o criminoso e o infrator, o delinquente e o burguês. Todas essas categorias, como ficarão evidentes, são categorias sociais definidas pelo capital hegemônico, que separa os homens a partir de seu poderio sócio-econômico e atribui a eles pesos totalmente diferentes acerca de seus delitos.
Foucault então traça uma história do ilegalismo, sobre como tais práticas nascem de uma necessidade de fugir da tirania dos monarcas com mão de ferro, apenas para que estas mesmas práticas se voltem contra as mesmas camadas populares que as perpetraram como meio de sobrevivência, enquanto o burguês agora emancipado pode conduzir o destino jurídico da sociedade e dos corpos que a compõe ao seu bel prazer, subordinando o direito às suas necessidades político-econômicas.
Da diferença entre Ilegalidade e Ilegalismo
Ao longo do texto Vigiar e Punir, texto essencial da autoria de Michel Foucault, aparece um termo que em traduções para o português costuma ser “ilegalidade” (que em francês seria illégalité), ou seja, algo fora da lei e punível como crime de maneira mais imediata. O termo usado por Foucault no idioma original de suas obras seria “illégalismes”, um conceito que Foucault elaborou para ilustrar a fronteira entre aquilo que é verdadeiramente ilegal daquilo que é moralmente questionável, porém socialmente aceito e até mesmo encorajado.
Esse limiar, é claro, está ligado a coisas como a classe social que o perpetrador do ilegalismo ocupa: “O modelo do capital neoliberal, como forma de gestão das massas e da máquina pública, apoia-se em um pacto entre governo e segurança, que funciona normativamente como quadro de referência para todos os aspectos da vida”[1]. O ponto é que, com o surgimento dos modelos legais inspirados por autores liberais para o liberalismo, essa relação tênue passou a ser cada vez mais borrada, cabendo então à essa estranha junção entre governo/estado e mercado definir os limites dela.
Esse jogo entre legalidade e ilegalidade que constitui o ilegalismo se apresenta de diferentes maneiras: ora como tentativa de burlar uma fiscalização ou cobrança de impostos, ora para que mercadorias contrabandeadas cheguem ao consumidor final sem que haja confisco ou punição para o vendedor irregular. É possível, por exemplo, evitar uma prisão em decorrência da falta de habilitação para a prática de um determinado comércio através do popular “molhar a mão” das autoridades. É o que acontece, para enriquecer ainda mais este exemplo, nos transportes públicos nas cidades brasileiras onde os tradicionais “camelôs” comercializam produtos para os quais não possuem a devida autorização com uma relativa conivência (e até mesmo convivência em alguns casos) por parte das autoridades.
“Todo dispositivo legislativo dispôs espaços protegidos e proveitosos onde a lei pode ser violada; outros, onde pode ser ignorada; outros, finalmente, onde as infrações são sancionadas. No limite, diria, à vontade, que a lei não foi feita para impedir um ou outro tipo de comportamento, mas para diferenciar as maneiras de desviar a própria lei"[2], ou seja: as leis existem não apenas com a função de regulamentar o lícito e o ilícito, mas segundo a análise foucaultiana, além desta função, apresenta ainda como função (talvez ainda mais importante que a primeira) a criação de espaços no entre-leis, espaços estes onde aquele limite já mencionado entre o legal e o ilegal, entre a infração e o crime propriamente dito, acontecem. É por isso que Foucault também aponta que “O jogo recíproco das ilegalidades fazia parte da vida política e econômica da sociedade”[3] desde a formação delas. Nos períodos mais rígidos em que a punição se fazia mais severa e até mesmo letal, mas eram menos universais, o ilegalismo servia tanto para as massas populares que viam nele a possibilidade de garantir sua subsistência enquanto classes mais abastadas sempre viam nos ilegalismos a possibilidade de ampliar seus lucros sem que eles passassem pela mão de ferro da coroa. Por isso Foucault afirma “que as diversas ilegalidades próprias a cada grupo tinham umas com as outras relações que eram ao mesmo tempo de rivalidade, de concorrência, de conflitos de interesse, e de apoio recíproco, de cumplicidade”[4], pois tais práticas colocavam povo e burguesia em papéis tão diversos que ora um dependia do outro, ora um lesava e era lesado pelo outro.
O crime no liberalismo e os novos ilegalismos
A partir da reforma dos códigos jurídicos em ampla difusão no período pós-iluminista pelos liberais e legalistas, surge a necessidade econômica de blindar a burguesia contra os ilegalismos que passaram a valer-se do aumento exponencial da riqueza que se tornou altamente concentrada pelos burgueses para praticar novos delitos. Substitui-se o contrabando (ainda que não completamente) pelo roubo e os crimes de sangue por crimes mais brandos, concentrados agora contra a propriedade privada especialmente, como aponta Foucault: “O ilegalismo dos direitos, que muitas vezes assegurava a sobrevivência dos mais despojados, tende, com o novo estatuto da propriedade, a tornar-se um ilegalismo de bens. Será então necessário puni-la.”[5]
Para proteger-se disso, a burguesia que agora ocupa a hegemonia político-econômica transforma não apenas em criminoso, mas em inimigo do bem social e da pátria, o delinquente. O que não significa que o mesmo rigor se abate sobre sua própria classe social. Novos ilegalismos por parte da burguesia também surgem nesse tempo, ilegalismos fiscais e econômicos em sua maioria, tais como: evasão de divisas, sonegação de impostos e tráfico de informações do mercado compõe o dia a dia de qualquer homem de negócios da sociedade burguesa capitalista, do mais regional ao mais globalizado, pois muda-se apenas o escopo do ilegalismo, mas não a prática em si.
Nesse sentido, busca-se por parte do neoliberal não apenas a garantia de sua impunidade, mas também a garantia da punição para aqueles que podem ameaçar seus lucros e a própria ordem social que mantém estes lucros. Entra aí o que aponta Dos Santos Reis ao colocar que “Por esse motivo, os dispositivos de segurança mobilizados para o controle, o monitoramento e a gestão de campos estratégicos são, atualmente, alvos prioritários de atenção e investimento por parte de todos os governos. (...)Configura-se assim uma preocupação constante de investimento na securitização da vida cuja contrapartida é o “fazer morrer” daquelas cujas condutas são identificadas, no contrato racial e social do neoliberalismo, com a periculosidade orgânica”[6] com essa “periculosidade orgânica” sendo atribuída pelas classes dominantes ao indivíduo periférico e marginal a todo esse processo, usualmente tendo endereço, classe e cor de pele definidos, ainda que extraoficialmente, pois “(...)para a manutenção da ordem social e da seletividade do sistema penal, exigem-se sacrifícios. Daí, a outra face da segurança, nas formas da razão de Estado, ser o controle social violento, que tem como paradigma securitário o incremento da letalidade do sistema penal”[7].
Daí se retoma a ideia inicial de que as leis servem muito mais para delimitar até onde vão os ilegalismos do que necessariamente impedir os crimes sociais. Porque a própria definição de “crime social”, mesmo sendo juridicamente estipulada, é exercida através de ilegalismos. O crime quando é punido nem sempre é punido pelo fato de ser crime, mas sim pelo fato de ter sido praticado por membros pertencentes à já mencionada periculosidade orgânica estabelecida economicamente pelo capital.
Tal determinação fica evidente ao se observar a ação dos órgãos jurídicos aliados aos órgãos de policiamento, tidos tradicionalmente como os mais repressivos. Acontece que a repressão exercida pelas forças de segurança só é possível de ser realizada devido ao respaldo legal oferecido juridicamente para que as forças de policiamento assim o façam, como aponta Reis em seu texto: “Interessante ressaltar não apenas o papel significativo desempenhado pelas instâncias jurídicas e penitenciárias no contexto penal, mas também aquele realizado pelas polícias, que definem cotidianamente quais condutas desviantes serão enquadradas como tais, de acordo com os estereótipos de raça, de classe e de posição social em questão, mediante a leitura dos signos corporais. Há, então, indivíduos mais ou menos vulneráveis ao sistema penal, de modo que, nas sociedades “livres” neoliberais, são reforçados os mecanismos de segregação social e racial.”[8]
Referências
[1] Michel Foucault, a gestão dos ilegalismos e a razão criminológica neoliberal – Diego dos Santos Reis (UFRJ), pg. 281 [2] Foucault, 1975 [3] Foucault, 2009, pg. 83 [4] Idem. [5] Foucault, 2009, pg. 85 [6] REIS, pg. 289 [7] Idem. [8] REIS, pg. 290
Bibliografia
FOUCAULT, M. Vigiar e Punir. Trad. Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 2009.
___________. Dits et écrits III. Des supplices aux cellules. Le Monde, 1975.
___________. O Nascimento da Biopolítica. Edições 70, 2010.
DOS SANTOS REIS, D. Michel Foucault, a gestão dos ilegalismos e a razão criminológica neoliberal. Revista Filosofia Aurora, p. 279-299. Curitiba, 2020.
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