Introdução
A Investigação sobre o Entendimento Humano de Hume, de 1748, é uma versão abreviada dos argumentos humeanos da primeira parte de sua principal obra, o Tratado da Natureza Humana, de 1739. Na Investigação, Hume pretende, através do empirismo, isto é, a aplicação do método experimental ao estudo da natureza humana através da experiência sensível, modificar e revolucionar as noções sobre a natureza do conhecimento que eram reconhecidas em seu tempo. Seu foco são as questões de justificação sobre as operações do entendimento em nossa pretensão de conhecimento de existentes, que, portanto, não é decidível por meras razões formais, isto é, do que ele chama de questões de fatos (que contrasta com as relações de ideias, que “podem ser descobertas pelas simples operações do pensamento, independentemente do que possa existir em qualquer parte do universo” ]1]), a saber: Qual é a natureza de todos os nossos raciocínios acerca de questões de fato?Qual é o fundamento de todos os nossos raciocínios e conclusões acerca dessa relação? Qual é o fundamento de todas as nossas conclusões a partir da experiência? ]2] Dessa forma, para discutir tanto essas questões quanto os elementos que as embasam e dão nome ao título desse texto, exporei e analisarei de saída as cinco primeiras seções das Investigações.
O projeto humeano
Na primeira seção da Investigação, Hume argumenta que a filosofia moral (ou ciência da natureza humana) pode ser tratada de duas maneiras: A primeira considera o homem como um ser ativo e influenciado pelos gostos e sentimentos em suas atitudes, onde persegue ou evita um objeto conforme o valor que esses objetos aparentam ter e segundo a perspectiva que se apresentam, sendo a virtude o objeto mais valioso para essa vertente. Já a segunda vertente concebe o homem antes como um ser racional do que um ser ativo e, portanto, visa refletir e entender mais sobre a formação de seu entendimento do que sobre seu cultivo dos costumes; a natureza humana é tomada como um objeto de especulação e é submetida então a um rigoroso exame para discernir os princípios que regulam nosso entendimento, estimulam nossos sentimentos e fazem-nos aprovar ou não alguma ação, conduta particular ou objeto.
O projeto humeano é de cultivar e difundir um caráter excepcional que encontra-se entre dois extremos, a saber, tanto pelos livros , através do discernimento e da delicadeza quanto pela convivência social e pelos negócios, seja através da integridade e exatidão, seja através da existência de obras que possuam um gênero e estilo acessíveis, que não se afastem demasiadamente da vida cotidiana e não sejam absolutamente abstratas e ininteligíveis. Essa dualidade reside no fato de que por um lado, o homem é um ser racional, e, portanto, a ciência é aquilo que desenvolve-o. Entretanto, os limites do entendimento humano são estreitos tanto na sua extensão quanto na confiabilidade de suas aquisições. Por outro lado, além de um ser racional, o homem também é um ser ativo e um ser social. Conforme os comentários de Hume, aparentemente, a natureza determinou uma espécie de vida mista como a mais adequada e por isso, nenhuma dessas inclinações deve impor-se excessivamente a ponto de impossibilitá-lo de outras ocupações. Assim, devemos satisfazer sim nossa paixão pela ciência, mas cuidar para que ela seja uma ciência humana, com uma relevância direta para a vida prática e social, expressa por sua célebre frase:
Sê um filósofo, mas, em meio a toda a sua filosofia, não deixes de ser um homem. (Investigação, Seção I, §6, p. 23).
É preciso, no entanto, salientar o seguinte fato: A filosofia abstrusa, exata e complexa, terá sempre menos preferência do que a filosofia simples e acessível para a maior parte das pessoas, pois por não participar ativamente da vida cotidiana, é considerada menos agradável e útil. A questão é que, por trás disso, não há somente uma mera preferência; não é apenas uma questão de gosto e opinião geral, mas sim uma rejeição a todo e qualquer raciocínio mais complexo, em específico a questões metafísicas, cuja obscuridade de suas especulações não se deve somente a elas serem árduas, mas porque são fontes inevitáveis de erro e incerteza. A metafísica é contestada por não ser uma ciência, por grande parte de seus estudos serem “esforços frustrados da vaidade humana que desejam penetrar em questões inacessíveis ao entendimento, ou da perspicácia das superstições populares que em disfarçar-se para proteger suas fraquezas, pois são incapazes de defender-se em campo aberto.”]3]. O projeto humeano se afirma através do raciocínio exato e justo como o único método capaz de investigar seriamente a natureza do entendimento humano e demonstrar sua incapacidade em tratar de questões abstratas. É somente dedicando ao cultivo da verdadeira metafísica que é adulterada e falsa. O que está em jogo aqui é o conhecimento dos poderes cognitivos do entendimento para determinar os limites de suas operações, sem submeter-se a dogmatismos teóricos que servem de refúgio para superstições religiosas disfarçarem suas fraquezas com ares científicos.
Essa investigação deve então centrar suas reflexões acerca das operações da mente, que com sua natureza elusiva, obscurecem-se sempre que tornam-se objetos de reflexão, apesar de apresentarem-se a nós de uma maneira íntima. É uma tarefa da ciência reconhecer as diversas operações mentais, distinguindo-as umas das outras e classificando-as. Desde a virada reflexiva para os dados imediatos da consciência (isto é, para as ideias), feita por Descartes em suas Meditações, pode-se vislumbrar com mais clareza a viabilidade de um conhecimento da mente; com Locke, tal possibilidade avançou consideravelmente com sua virada epistemológica para a investigação sistemática das faculdades mentais que operam com dados imediatos da consciência como a única forma de esclarecer nossa possibilidade de acesso a qualquer realidade extra mental. O que Hume faz é tomar essa mesma via reflexiva e epistêmica, pretendendo introduzir nessa investigação a novidade que a seu ver garantira o sucesso das ciências naturais modernas, a saber, o método experimental de inferir dados observáveis as leis de ocorrência e por inserir essas leis a princípios explicativos mais gerais”. Em suma, Hume pretende fundar uma ciência da mente cuja referência metodológica devem seguir o rigor e precisão semelhante ao que Newton alcançou na Física, assumindo que a mente é uma região de fenômenos que é parte da ordem natural de tal forma que a mente é descrita em termos correlacionados a física newtoniana (percepções correlacionam-se com partículas e forças associativas com campos de forças, por exemplo). A característica que marca a filosofia humeana é sua abordagem naturalista de tratar a mente não como uma faculdade de pensamento em sua estrutura e função própria, mas como parte dependente da natureza humana enquanto espécie natural.
Impressões e ideias
Hume parte da constatação (que remonta a Descartes) de que a mente consiste de percepções enquanto dados imediatos da consciência. Ele divide essas percepções da mente em dois tipos de acordo com seu grau de força e vivacidade: as que são menos fortes e vivazes são chamadas de pensamentos ou ideias e as mais fortes e vivazes, são denominadas de impressões[4]. Enquanto as impressões são todos os dados que afetam a capacidade de sentir diante de determinado objeto, isto é, aquilo “que ouvimos, vemos, sentimos, amamos, odiamos desejamos e exercemos nossa vontade” [5], as ideias são todos os dados concebidos pela capacidade de pensar quando conscientemente refletimos acerca das sensações sentidas. Além disso, há uma distinção entre percepções simples e complexas, sendo as primeiras únicas e as segundas combinações dessas percepções simples[6]. Este princípio conta como uma reafirmação da tese humeana no Tratado da Natureza Humana de que todas as nossas ideias complexas devem poder em princípio ser analisadas em termos de ideias simples que são então derivadas de impressões simples (enquanto um dêitico), às quais elas correspondem e que elas representam. Na Investigação, Hume expõe a ordem argumentativa desse princípio a partir do pensamento. Com exceção de uma absoluta contradição, o pensamento é capaz de operar de forma livre, escapando tanto da autoridade humana quanto dos limites da natureza e da realidade, ao conceber até mesmo aquilo que nunca foi visto ou que não existe na realidade, por exemplo. Entretanto, um exame mais minucioso evidencia que na verdade o pensamento está confinado a limites bem-estreitos, pois tudo o que o pensamento opera são modificações[7] dos dados que lhe chegam através dos sentidos e da experiência. Isso significa que todas as ideias (pensadas, isto é, nossas percepções mais tênues) são, ao menos em última instância, cópias de nossas impressões (sentidas, isto é, de nossas percepções mais vivazes).
Para provar tal tese, Hume apresenta dois argumentos: O primeiro argumento consiste na evidenciação de que a análise de qualquer ideia complexa permite constatar que ela decompõe-se em ideias simples, que são cópias de sensações ou sentimentos prévios. E isso é válido até para as ideias mais afastadas dessa origem, como a ideia de Deus, por exemplo. O conceito de um Ser infinitamente inteligente, sábio e bondoso surge, segundo essa tese, da reflexão sobre as operações da mente e do aumento imensurável dessas qualidades. O segundo argumento explicita que diante da falta de determinadas impressões, não é possível ter ideias correspondentes dessas impressões. Assim, no caso de um cego, por exemplo, esse não pode formar as ideias de cores. Entretanto, há uma exceção para esse princípio: um fenômeno contraditório que possibilita a existência de ideias independentemente de suas impressões correspondentes, constituída através do exemplo da tonalidade de azul desconhecida, mas que por se tratar de uma situação tão excepcional, não o preocupa a redefinir sua tese geral.[8]
Como empirista, Hume elaborou uma tipologia justamente acerca da distinção entre o que provém da sensibilidade e aquilo que a organiza. Em virtude das impressões serem vivazes e fortes, os limites entre elas estão mais precisamente definidos em comparação às ideias, que são abstratas, fracas e obscuras, suscetível a confusões e erros. As ideias não são inatas, mas derivam das percepções e sensações apreendidas pelo ser humano. Posto isso, sempre que houver dúvidas acerca do sentido ou validade de um conceito filosófico, como Hume aponta que frequentemente ocorre, precisamos “apenas nos indagar: de que impressão deriva esta suposta ideia? E se for impossível atribuir-lhe qualquer impressão, isso servirá para confirmar nossa suspeita.”.[9]
Da associação de ideias
Apesar das impressões simples serem dados singulares e independentes e consequentemente, as ideias simples que as representam não possuírem então qualquer relação necessária entre si, o pensamento, por sua vez, não é majoritariamente composto por meras ideias simples desconectadas umas das outras, mas sim de ideias complexas. Evidencia-se que, portanto, existe um “princípio de conexão entre os diversos pensamento ou ideias da mente, e que, ao surgirem à memória ou à imaginação, eles se introduzem uns aos outros com um certo grau de método e regularidade”.[10]. Mesmo em nossos sonhos, a imaginação está submetida a esse princípio de conexão entre ideias, visto que há aí uma ligação entre as diferentes ideias que se compõem e sucedem-se no sonho. O fato de que ideias complexas expressas em diferentes linguagens que não tem nenhuma conexão entre si correspondem mesmo assim de forma aproximada umas às outras seria, segundo Hume, uma prova da existência de “algum princípio universal de conexão que exerceu igual influência em toda a humanidade”[11], Hume afirma que, na verdade, são três os princípios de conexão que governam a formação de nossos pensamentos, a saber, as relações de semelhança, de contiguidade no tempo ou no espaço e de causalidade.[12]
Esses princípios da natureza humana são como uma espécie de força de atração, que liga as ideias de modo que a mente passe facilmente de uma à outra. Ao analisar cada princípio adotando um método rigoroso até que se chegue ao princípio mais geral possível, denota-se que na percepção da mente, os objetos surgem para nós como um só, isto é, como uma unidade e que as afecções excitadas por um objeto passam facilmente para outro associado ao primeiro, mas não transferem-se (ou somente com dificuldade) entre objetos diferentes que não estejam associados. É a partir dessas conclusões que Hume começar a formular as questões que ele pretende responder nas próximas seções.
Questões de fatos, causalidade e experiência
Para começar a construir sua argumentação cética acerca das operações do entendimento, Hume inicia a quarta seção com sua famosa distinção de que todos os objetos da razão humana[13] que dividem-se entre as proposições que são relações de ideias e as proposições que são questões de fato (Hume’s Fork, a forquilha de Hume, termo cunhado por Antony Flew em seu livro Hume’s Philosophy of Belief). As relações de ideias correspondem a todas as afirmações que são intuitivas ou demonstrativamente certas e que podem ser descobertas pela simples operação do pensamento, como a proposição o quadrado da hipotenusa é igual a soma dos quadrados dos catetos. Já as questões de fato não são tais que sua verdade possa ser apurada como no caso das relações de ideias. A característica que marca uma questão de fato é que seu contrário sempre é possível, pois jamais pode implicar contradição, e, portanto, a mente o concebe com a mesma facilidade e clareza, como algo perfeitamente ajustável à realidade. Por isso que:
O fato de que o sol não nascerá amanhã não é uma proposição menos inteligível nem implica mais contradição que a afirmação de que ele nascerá; e seria vão, portanto, tentar demonstrar sua falsidade.”. (Investigação, Seção IV, §2, p. 54).
Há, assim, algumas diferenças importantes a serem destacadas entre essas proposições. Primeiramente, enquanto as relações de ideias não exprimem objetos que existem na realidade, isto é, não afirmam a existência de objetos concretos, as questões de fato, ao contrário, abordam justamente tais existências. Em segundo lugar, e consequentemente, as relações de ideias são proposições a priori, vale dizer, são verdades necessárias, visto que negá-las implica uma contradição, enquanto que as questões de fato, por sua vez, só podem ser validadas através da experiência. Isso significa que as relações de ideias são sempre certas, pois são ou auto evidentes ou demonstráveis a partir de proposições evidentes, já as questões de fato, ao contrário, remetem sempre a proposições sobre regularidades observáveis e, assim, apenas prováveis, pois afirmar seu contrário não implica uma contradição lógica.
Dessa forma, Hume pretende investigar a natureza da evidência que possa garantir a verdade das proposições factuais que afirma a existência das coisas e suas relações determinadas, na medida em “que vá além do testemunho presente de nossos sentidos ou dos registros de nossa memória.”[14], pois estes não garantem a validação da verdade ou falsidade sobre questões de fato que vão além dos dados imediatos das percepções. A questão que é posta, então, é: Por que Hume não as reconhece como fundamentos suficientes para averiguar a veracidade de questões de fato? Para responder a isso com clareza cabe reconhecer a seguinte diferença: Por um lado, nossos sentidos e nossa memória apresentam-nos nossas percepções como dados singulares e efêmeros dos quais temos consciência como apresentando algo atual ou passado, isto é, como casos já observados. Por outro lado, uma proposição factual afirma uma relação geral e estável entre os próprios perceptos que supostamente se estenderia também para casos ainda não observados nos quais de novo teríamos percepções semelhantes [...]. Se as proposições factuais afirmam relações factuais que vigorariam pretensamente para além de dados passados e presentes, então os testemunhos dos sentidos e da memória não são evidências suficientes para garanti-las.
O que garante a verdade de uma questão de fato, indo além das nossas memórias e dos nossos sentidos precisa ser alguma evidência para aquilo que Hume aponta como o que a fundamenta, a saber, a relação de causalidade, pois um conhecimento factual precisa sempre poder transitar de percepções presentes para outras percepções ausentes, delas inferidas e o faz justamente por afirma uma relação causal entre o objetos dessas percepções (afinal, se não tivesse nada que os ligasse, a inferência seria duvidosa). Essa relação, por sua vez, se apresenta como próxima ou distante, direta ou colateral. Calor e luz, por exemplo, são efeitos colaterais do fogo, e um dos efeitos pode ser legitimamente inferido do outro. É por isso que a investigação humeana caminha para descobrir de que forma chegamos a validar nosso pretenso conhecimento de causas e efeitos enquanto uma conexão invariável entre existentes distintos.
Ao afirmar que “nenhum objeto jamais revela, pelas qualidades que aparecem aos sentidos, nem as causas que o produziram, nem os efeitos que dele provirão; e tampouco nossa razão é capaz de extrair, sem auxílio da experiência, qualquer conclusão referente à existência efetiva de coisas ou questões de fato”[15], Hume expressa que cada percepção manifesta na mente uma impressão ou ideia de um dado existente, mas esse percepto é independente de qualquer outro dado existente, e por isso, não indica como pode causar algo e de ser causado por algo, já que só descobrimos uma propriedade eficiente de um objeto (o poder que algo tem de produzir efeitos determinados em outra coisa) após este produzir um efeito sobre outro. Logo, uma propriedade eficiente é uma propriedade relativa, isto é, é um poder que um objeto possui de estabelecer uma relação de causa e efeito com outro objeto.[16] Além dessas percepções particulares e da relação de causalidade que garantem a evidência das relações factuais, é a experiência que nos possibilita descobrir como determinados objetos estão constantemente ligados uns aos outros, caracterizada, sobretudo, pela sua continuidade temporal (uma sucessão de percepções em si mesmas pontuais) e pela sua regularidade enquanto uma constante conjunção de percepções (pontuais). Caso a mente tivesse apenas percepções pontuais, ela iria tratar cada vez sempre com um único existente, todavia, por ela ter a capacidade de reconhecer relações entre existentes singulares é por causa dela também possuir a experiência de uma sucessão de percepções e dessas percepções apresentarem-se constantemente conjugadas entre si, fazendo com que a mente as trate como percepções que tenham uma relação contingente como um fato em nossa experiência, mesmo elas não tendo entre si uma relação necessária entre os conteúdos de suas ideias.[17] Isso é analisado por Hume à partir da sétima seção do quarto capítulo da Investigação em três casos e um contra-argumento.
O argumento humeano de que tanto não conseguimos inferir as qualidades eficientes de um objeto completamente novo para nós quanto seu inverso, resulta de ser somente a experiência que nos permite descobrir algo de determinado objeto sobre suas relações causais, pois a inferência deixa de ser a percepção do objeto e passa a ser a sua constante conjugação com a percepções de outros objetos, motivo pelo qual:
Quando raciocinamos a priori e consideramos um objeto ou causa apenas tal como aparece à mente. Independente de toda observação, ele jamais poderá sugerir-nos a ideia de algum objeto distinto, como seu efeito, e muito menos exibir-nos a conexão inseparável e inviolável entre eles. (Investigação, Seção IV, §13, p. 61)
Com relação ao argumento de casos aparentemente óbvios de consequências causais (não podemos imaginar as qualidades eficientes de um objeto caso ele contraste com o ‘curso ordinário da natureza’), expõe-se ainda assim que é possível supor algo desses casos, desde que tenhamos noção de que esses acontecimentos há justamente uma analogia com esse ‘curso ordinário da natureza’. É a partir desse ponto que Hume começa a preparar sua resposta para a réplica[18] de que as relações de causalidade não provêm exclusivamente da experiência, a saber, de que não precisamos da experiência para termos conhecimento de relações causais óbvias e, assim, não se pode estabelecer como princípio geral a proposta humeana. Contra essa objeção, Hume introduz o conceito de hábito, inicialmente afirmando que se trata de algo que já conforme a nossa experiência, somos familiarizados com acontecimentos que nos são familiares desde que nascemos, que apresentam justamente uma íntima analogia com o curso ‘ordinário da natureza’ e que “supomos dependerem de qualidades simples de objetos sem nenhuma estrutura secreta de partes” [19]. Em seguida, ele manifesta a forma como raciocinamos em geral sobre a relação causal e concebemos uma conclusão determinada. Segundo o exemplo que Hume nos dá, o da bola de bilhar, o que ocorre quando a mente infere sobre as relações causais de um acontecimento novo para ela, nesse caso, o encontro de uma bola de bilhar em movimento com outra parada? O mais atento e minucioso exame não possibilita a mente encontrar o efeito, a priori, na suposta causa e, portanto, pelo movimento da segundo bola de bilhar ser completamente diferente do movimento da primeira, não pode revelar-se nela.
O que fica evidenciado com isso é que como a assunção feita pela mente em todas as operações naturais a primeira imaginação de um efeito particular é arbitrária, é preciso avaliar da mesma maneira a suposta conexão causal que os liga entre si e impossibilita que algum outro efeito possa prover daquela causa. Caso supuséssemos que o efeito fosse semelhante a causa e, portanto, a causa em si revela-se seu efeito, isso iria permitir a mente passar diretamente da percepção presente de algo para a ideia de alguma coisa que ainda não é presente. Ora, mas não é isso que ocorre. O que a mente faz é imaginar diferentes possibilidades de resultados para determinada causa e só então inferir como efeito uma dessas possibilidades. A questão é que ao conceber diferentes possibilidades, a mente é limitada apenas pelo princípio de não-contradição. Logo, “por que, então, deveríamos dar preferência a uma suposição que não é mais consistente ou concebível que as demais?” [20]. Como nossos raciocínios a priori nunca conseguirão demonstrar o porquê temos determinada preferência, visto que há inúmeras possibilidades de efeitos não-contraditórios e igualmente possíveis, conclui-se então que é apenas baseado na experiência que os raciocínios causais chegam à determinada conclusão sobre qual efeito é o resultante. É a partir daqui que Hume formula o famoso ‘problema da indução’ (termo que não foi cunhado por ele), a saber, a falta de justificativa racional de nossas inferências indutivas. Recapitulando as suas perguntas e repostas feitas ao longo das seções, ele nos coloca uma questão mais difícil de se esclarecer:
Qual é o fundamento de todas as nossas conclusões a partir da experiência? (Investigação, Seção IV, §14, p. 61)
Diante de tal questão, Hume nos afirma que muitos filósofos ostentam ares de sabedoria, mas acabam tendo maus momentos e caindo em algum impasse perigoso. Para evitar tal armadilha, ele adota uma 'certa modéstia' em sua resposta, respondendo negativamente à questão. Em outras palavras, as inferências feitas a partir da experiência não são baseadas no entendimento.[21]
O argumento humeano a favor de sua tese consiste em refutar a tese contrária. Discriminando as qualidades superficiais dos objetos (que caracterizam os mesmos e são aparentes) dos poderes ocultos dos objetos (as qualidades eficientes deles que são ocultas), Hume parte do noção de que formamos crenças sobre as propriedades dos objetos mesmo sem as qualidades aparentes que formam nossas ideias dos objetos não revelarem em si seus poderes e princípios eficientes desses objetos, ou seja, não conhecemos a priori o poder causal dos objetos ideados e ainda assim, a mente tira conclusões sobre suas relações causais com outros objetos, na medida em que observamos na experiência certos poderes como ligados recorrentemente a certos objetos, de maneira que daí partimos para, por analogia, concluir algo sobre os demais casos semelhantes ainda não observados. O que essa inferência causal assinala é que a proposição (premissa) “Constatei que tal objeto sempre esteve acompanhado de tal efeito”[22] é completamente diferente da proposição (conclusiva) “Prevejo que outros objetos, de aparência semelhante, estarão acompanhados de efeitos semelhantes.”.[23]
Não é baseada no conhecimento da realidade que a mente tira conclusões causais, mas na regularidade de nossas percepções na experiência. Todavia, acerca do fundamento da mesma para tal processo, Hume se questiona sobre ela ser embasada o suficiente para tirar tais conclusões. Sua resposta afirma que a experiência passada garante sim uma informação imediata e legítima, mas somente dos objetos que lhe foram dados e durante um determinado período temporal. A questão fundamental é por que estende-se essa experiência ao futuro e a outros objetos que são semelhantes apenas em aparência[24]. Essa transição advém de uma conjectura geral de nossa mente que funciona como um tipo de princípio geral para nossas inferências causais particulares[25]. Dessa maneira, ao supormos que percepções semelhantes tem poderes semelhantes, ficamos propensos a identificar constantes relações de perceptos ‘α’ e ‘ß’ como uma causa para termos a suposição de que novas percepções semelhantes de ‘α’ irão se conjugar com novas percepções semelhantes de ‘ß’, nos fazendo presumir que ‘ß’ é a causa de ‘α’. Em contrapartida, afirmar que uma inferência depende de uma suposição significa dizer que a verdade da conclusão dessa inferência depende da verdade da suposição.
Hume pretende com isso refutar aqueles que defendem que nossas inferências causais, fundamentadas na experiência, são inferidas por meio de uma cadeia de raciocínio, pois não há garantias de que a uniformidade da natureza pressuposta em nossas inferências causais, fundamentadas na experiência, são um principio argumentativo racional, seja demonstrativo[26], seja provável[27]. É por isso que ele admite que é correto inferir uma proposição de outra e que tal inferência sempre é feita, mas que a conexão entre elas não é intuitiva, mas sim realizada através de um termo médio que amplia o conteúdo informativo da primeira proposição (premissa). Enquanto filósofo, Hume busca compreender o fundamento dessa inferência causal baseada na experiência, pois para além do espírito filosófico, há por trás um sério questionamento acerca da justificativa de nossas conclusões causais.
O hábito
Hume, ao negar a possibilidade de um conhecimento factual enquanto crença verdadeira racionalmente justificada sobre relações causais de objetos, assume que esta não é uma questão de epistemologia normativa, isto é, um projeto que visa esclarecer as inferências causais através de regras, fundamentos e evidências, mas uma questão de psicologia cognitiva; são as cognições que controlam o comportamento humano. É ao expressar seu ceticismo moderado, que segundo Hume, é uma filosofia que delimita a mente, utilizando-se da dúvida para freá-la de suas grandiosas pretensões que ele retoma a noção de hábito (ou costume) que havia introduzido anteriormente. Hume define-o agora como uma espécie de inclinação não racional da mente que cria crenças baseadas em repetições vistas através da experiência, o grande guia da vida humana[28] que nos faz crer que ocorrerá no futuro uma série de acontecimentos semelhante aos que sucederam-se no passado.
A filosofia experimental humeana consiste justamente em ser um naturalismo que epistemologicamente corresponde as tendências originais da mente que ilustram os princípios gerais do conhecimento humano enquanto uma crença justificada, motivo pelo qual a razão é incapaz de variar sobre as inferências que faz[29]. A crença, enquanto uma operação da alma, é uma operação da mente relativa a fatos ou a existência de coisas, provém somente de algum objeto que está presente a memória ou aos sentidos e de uma conjunção habitual entre esse objeto e algum outro; uma propensão natural que nenhum processo do entendimento consegue evitar ou produzir.
Referências
]2]Tais questões são formuladas pelo próprio Hume na Parte 2 da Seção IV – Dúvidas céticas sobre as operações do entendimento, na proposição 14
]3]Investigação, Seção I, §11, p. 26 [4]Hume salienta que emprega o termo impressão num sentido diferente do usual, pois esse tipo de percepção que Hume pretende demarcar não tinha nome em diversas línguas, inclusive na inglesa, muito provavelmente porque “com exceção de uma ordem filosófica”, nunca foi necessário para qualquer propósito as agrupar sob um termo geral.
[5]Investigação, Seção II, §3, p. 34 [6]Apesar de impressões sensíveis serem únicas e, portanto, corresponderem a ideias simples, nota-se que muitas de nossas impressões e ideias são complexas. Ora, na medida em que tal fato é constatado, a correspondência que existe entre percepções simples não ocorre com percepções complexas, o que será abordado na terceira seção desse texto.
[7]“Esse poder de criação da mente consiste na capacidade de compor, transpor, aumentar e diminuir os materiais que os sentidos e a experiência nos fornecem.”. (Investigação, Seção II, §5, p. 35). [8]Hume parte da suposição de alguém que tenha visto uma diversidade de cores por cerca de trinta anos, exceto uma tonalidade específica de azul. Caso todas as diferentes tonalidades de cores, com exceção dessa desconhecida, fossem dispostas gradualmente conforme sua tonalidade perante essa pessoa, ela perceberia um espaço vazio onde falta aquele tom e poderia formar uma ideia desta tonalidade de azul desconhecida, através da imaginação.
[9]Investigação, Seção 2, §9, p. 39
[10]Investigação, Seção III, §1, p. 41
[11]Investigação, Seção III, §1, p. 42
[12]No §3 da seção III, Hume exemplifica cada princípio. A semelhança é ilustrada pelas ideias que um retrato evoca com o original, a contiguidade pela referência a um cômodo em uma residência que leva a uma concepção dos demais cômodos e a causalidade pelo pensamento de uma ferida que gera uma concepção da dor que lhe segue.
[13]Ser um objeto da razão significa ser um objeto passível de ser investigado pelo entendimento, acerca do qual pode-se ter pensamentos determinados, interconectados e, portanto, decidíveis quanto a seu valor de verdade ou falsidade.
[14]Investigação, Seção IV, §3, p. 54
[15]Investigação, Seção IV, §6, p. 56
[16]Caso fosse o contrário, seria possível através do exame de um objeto percebido inferir o que o causou e quais os efeitos que ele iria produzir. [17]Por exemplo, a percepção do gelo não possui nenhuma relação necessária com a percepção de frio, em seu conteúdo, mas na experiência, a percepção de gelo, enquanto uma questão de fato, está constantemente conjugada com a percepção de frio, o que leva a mente a inferir através da experiência, que o gelo causa um esfriamento.
[18] “Imaginamos que, se tivéssemos sido trazidos de súbito a este mundo, poderíamos ter inferido desde o início que uma bola de bilhar iria comunicar movimento a uma outar por meio do impulso, e que não precisaríamos ter aguardado o resultado para nos pronunciarmos com certeza acerca dele”. (Investigação, Seção IV, §8, p. 57).
[19]Investigação, Seção IV, §8, p. 57
[20]Investigação, Seção IV, §10, p. 58
[21]Segundo Hume, “após termos experiência das operações de causa e efeito, as conclusões que retiramos dessa experiência não estão baseadas no raciocínio ou em qualquer processo do entendimento.”. (Investigação, Seção IV, §15, p. 62).
[22]Investigação, Seção IV, §16, p. 64
[23]Investigação, Seção IV, §16, p. 64
[24]“Se houver qualquer suspeita de que o curso da natureza possa vir a modificar-se, e que o passado possa não ser uma regra para o futuro, toda a experiência se tornará inútil e incapaz de dar origem a qualquer inferência ou conclusão.” (Investigação, Seção IV, §21, p. 68). [25]Conforme o exemplo que Hume nos dá acerca da nutrição do pão e de um corpo semelhante. [26]A uniformidade da natureza não pode ser demonstrada porque isso significaria rejeitar como necessariamente falso o seu oposto, o que não tem sentido, visto que a negação dessa uniformidade não acarreta contradição. Logo, não é necessário que um objeto percebido que detinha determinadas qualidades anteriormente e que mostrou ter certos poderes, através da experiência, também tenha no futuro os mesmos poderes, mesmo tendo as mesmas qualidades. De igual modo, não há necessidade que algo, por ter qualidades semelhantes a um objeto percebido que manifestou-se possuindo determinados poderes, também deva mostrar esses mesmos poderes. [27]A formulação de um argumento provável sobre a uniformidade da natureza nos leva uma petição de princípio, pois consiste justamente em fazer o inverso de legitimar a validade de um argumento indutivo que vai de um fenômeno observável para o não observável (e, portanto, garantir a uniformidade da natureza enquanto um princípio geral).
[28] Sem ele, Hume afirma que desconheceríamos toda questão que fato ultrapassa-se o que é presente para a memória e para os sentidos. “Jamais saberíamos como adequar meios a fins, nem como empregar nossos poderes naturais para produzir um efeito qualquer. Pôr-se-ia de imediato um fim a toda ação, bem como à parte principal da especulação”. (Investigação, Seção V, §6, p. 77).
[29]Tanto que ele se pergunta do porque extraímos de mil casos uma conclusão que não conseguimos retirar de um único caso, apesar deles não se distinguirem em nada.
Bibliografia
HUME, David. Investigações sobre o entendimento humano e sobre os princípios da moral, tradução: José Oscar de Almeida Marques. – São Paulo, SP: UNESP, 2004.
________. Tratado da natureza humana, tradução: Débora Danowski. 2. ed. – São Paulo, SP: UNESP, 2009.
Comments