Texto originalmente escrito em 22 de abril de 2020
Pouquíssimos filósofos consideram a liberdade como um produto do direito e do estado, uma vez que a larga maioria deles em suas filosofias do direito (menciono aqui apenas dois como exemplo, Hobbes e Rousseau) afirmam ser a lei uma forma racional de abrir mão das liberdades em prol de um bem comum que não existiria no caso da ausência de limites jurídicos para a ação. Vale aqui frisar que os filósofos acima possuíam radicais diferenças quanto a vida em sociedade: enquanto o inglês Hobbes defendia a vida social ao dizer ser esse o meio de reduzir a fragilidade humana frente aos perigos naturais, o franco-suíço Rousseau já colocava na vida em sociedade a causa da corrupção da boa vontade humana, devido aos conflitos sociais despertos por esse ambiente (como a briga por poder político, para ilustrar). Entretanto, apesar dessa grande diferença, ambos afirmavam que a liberdade era limitada pelas leis e pelo direito, as mesmas que garantiam sua sobrevivência coletiva.
O filósofo alemão Georg Wilhelm Friedrich Hegel ( 27 de agosto de 1770 – 14 de novembro de 1831) apresenta uma abordagem nova em relação à filosofia do direito por introduzir em seu interior as noções racionalistas e idealistas presentes em seu sistema filosófico de maneira geral (algo que pode ser mais aprofundado em um futuro artigo). Em linhas gerais, Hegel preconiza que a efetividade racional é a forma do Espírito agir no mundo, sendo esse espírito um coletivo que acumula em si a evolução e desenvolvimento, frutos de milênios de cultura, ciência, moral e ética presentes na história. Esse espírito torna-se uma consciência-de-si, ou um em-si, quando o homem na sua subjetividade se reconhece como um ente dotado de vontade. Esse primeiro estágio do conhecimento do espírito é chamado por Hegel na Fenomenologia do Espírito de “razão observadora” pois ela enxerga a si mesma e sua diferença para com o resto do mundo.
“Na razão observadora, a pura unidade do eu e do ser, do ser-para-si e do ser-em-si, é determinada como Em-si ou como ser, e a consciência da razão se encontra.”
É à esse reconhecer-se através da razão que chamamos de consciência que Hegel atribui como sendo o próprio exercício do Espírito de reconhecer seu Em-si, ou seja, a sua própria existência, e reconhecer-se no mundo. O segundo estágio dessa experiência é justamente o da razão ativa, o momento do ser-para-si, é quando a consciência enxerga no mundo os objetos da sua experiência e da sua prática, é o que faz, por exemplo, com que o homem perceba que de sua experiência com a natureza seja necessária a produção de uma intervenção da razão em prol de sua própria sobrevivência e bem-estar e assim produza uma casa que o abrigue do frio, da chuva e dos perigos da noite, ou ainda quando fabrica uma lança a partir da madeira extraída de uma árvore para defender-se de predadores e também para caçar. Esse ato de transformar a natureza em obra da razão é, segundo Hegel, uma forma que o Espírito tem de agir-no-mundo, de ser efetivo e de colonizar o mundo, transformando-o em sua propriedade. O objetivo final é que a totalidade de experiências de cada sujeito forme esse emaranhado de “obras espirituais” ou de conhecimentos derivados da razão que se faz efetiva através dessas obras no mundo.
“[Na razão ativa] a categoria intuída, a coisa encontrada, entram na consciência como ser-para-si do Eu, que agora se sabe como Si na essência objetiva. Contudo, a determinação da categoria como ser-para-si – o oposto ao ser-em-si – é também unilateral[…]”
Hegel levanta porém, como vemos na citação acima, um alerta quanto a uma problemática acerca desta transição, que reside numa arbitrariedade da consciência e levanta a tese hegeliana da “dialética do senhor e do escravo”, muito importante para a análise do progresso do direito e da liberdade, e é aqui que começamos propriamente a tratar da temática central deste artigo.
Num primeiro momento em que esse ser-em-si (uma consciência) encontra no percurso de sua existência uma outra figura que, tal como ele, é também um ser-sem-si (e portanto é uma outra consciência) o que existe é não uma relação de mútuo reconhecimento, mas de conflito, já que nesse primeiro contato, essas consciências não reconhecem uma a outra como iguais, mas sim como ser-para-si (objeto) que precisa, do mesmo modo que o restante dos elementos do mundo, ser colonizado para sobrevivência. Essa relação conflituosa entre os sujeitos pode gerar uma série de efeitos, um dos quais lidaremos agora, a já mencionada dialética do senhor e do escravo: quando uma das consciências decide submeter-se à vontade da outra, evitando assim o conflito mortal enquanto as mesmas vivem num estado contraditório. Nenhuma delas é livre de fato, pois o escravo depende da benevolência de seu senhor para que siga existindo, enquanto este depende de que seu escravo exerça seu papel sem o qual o próprio senhor torna-se incapaz de viver sem. A solução para isso é, segundo a filosofia hegeliana, uma das maiores produções do espírito no mundo: o Direito. E aqui, o filósofo Vladimir Safatle aponta uma peculiaridade no conceito de Direito dentro dessa filosofia de Hegel.
“Antes de entrarmos diretamente nestas discussões, notemos a peculiaridade da compreensão do sentido da noção de ‘direito’ para Hegel. Por ‘direito’, Hegel entende algo a mais do que o ordenamento estatal de regulação da vida social. ‘Direito’ são: ‘Todos aqueles pressupostos sociais que se mostraram necessários para a realização da ‘vontade livre’ de cada sujeito individual’ Tais pressupostos sociais englobam o ordenamento jurídico atualmente existente com sua dinâmica conflituosa interna, as instituições políticas que compõe o Estado moderno, as relações intersubjetivas de amor que se dão no interior da família, a disposição subjetiva formada a partir da internalização de preceitos morais, a dinâmica do livre-mercado, entre outros. Eles ainda devem estar, de uma certa forma, assegurados (ou em processo de garantia) no interior dos quadros atuais do Estado moderno.'”
A proposta do direito dentro do sistema hegeliano, como fica claro com a passagem supracitada do texto de Safatle, é não de tratar exclusivamente de um sistema de leis, mas sim de todas as relações orgânicas que ocorrem dentro da vida social, da cultura. Dito isso, para a filosofia do direito proposta por Hegel, é vital que se analise esse direito sob a ótica mais universal dessas relações, englobando entre elas os conflitos decorrentes de experiências sociais diversas presentes dentro de um macro-cosmo social mais diverso. É por isso que a questão do conflito é tão importante para estar em posse da compreensão do que é o direito hegeliano, uma vez que o próprio direito é um tipo de organismo institucional através do qual o Espírito realiza sua emancipação sobre o mundo através da emancipação das individualidades. A grande questão que se levanta no momento é: de que forma se manifesta essa liberdade no direito? Sobre isso, temos essa breve explicação contida no Princípios da Filosofia do Direito, do próprio Hegel:
“O terreno do direito é de maneira geral o espiritual e sua situação e ponto de partida preciso é a vontade que é livre; na medida em que a liberdade constitui sua substância e determinação, o sistema do direito é a liberdade efetivada que o mundo do espírito produz a partir de si próprio, como segunda natureza.”
Essa efetivação da liberdade só é possível pela lei e pelo direito, e só nele é possível que esta seja desenvolvida. Fora do ambiente da legalidade não há qualquer coisa que impeça o conflito de consciências mencionado acima como sendo o cerne da interação humana. Não há sequer como chamar esse estágio pré-institucional da vida como sociedade já que não há nele qualquer tipo de coletividade orgânica, mas sim, a dominação pura e simples de forte contra fraco. É na lei que o espírito busca sua liberdade através da sua emancipação. Mas as leis não são perfeitas e o direito não é um organismo pronto já na sua concepção, mas como todo organismo, ele evolui eliminando de si os conflitos internos que os movem, e aí entramos numa outra relação dialética, dessa vez dentro da institucionalidade mesma.
Hegel faz uma oposição entre dois termos que são comumente considerados sinônimos entre si, liberdade e autonomia. Liberdade, como vimos, é o estágio de reconhecimento mútuo entre duas consciências, ou seja, é quando o ser torna-se “Em-si-e-para-si para um outro” conforme consta na Fenomenologia, ou ainda, quando dois Em-si se aceitam como iguais e como vontades livres. Já por autonomia, o autor designa não esse estágio de reconhecimento entre iguais, mas um estágio em que a consciência não se reconhece como parte daquele todo orgânico sócio-cultural-institucional que é o Espírito. O que acontece na autonomia é um estado de caos individual, ou de um coletivo pequeno, em que facções ou grupos lutam pelo poder para assim, subjugar outras facções que possuem o mesmo propósito.
“Já a autonomia, quando hipostasiada, produz uma noção de livre-arbítrio que, ao servir de guia para a ação política, acaba por levar a uma profunda atomização social produzida pela elevação da categoria de “indivíduo” a elemento central da vida social.”
Aqui Safatle aponta nessa mesma direção ao dizer que, ao invés de trazer harmonização àquele todo orgânico que é o direito e o corpo social, divide e provoca justamente a instabilidade ao seio social. É disso que brotam momentos como o do Terror, na França do século XVIII. É nesse momento em que os conflitos sociais internos, de classe, de gênero, de raça e assim por diante, se tornam evidentes. E apesar de reprováveis os meios pelos quais acontecem, Hegel não fecha os olhos para a importância desses momentos para o desenvolvimento do direito orgânico que se reconstitui a partir dos escombros e das ruínas desse caos promovido pela aparente anarquia da autonomia, que tende inclusive a findar-se a si mesma para dar seu lugar à solução do conflito que só veio a tona graças à esse momento. Para isso volto a citar o texto de Safatle afim de ilustrar melhor este ponto.
“Uma autenticidade que veria, nas leis, apenas a coerção e a violência institucionalizada sob a forma do direito positivo, já que as leis nunca seriam condizentes com aquilo que Hegel chamou, na Fenomenologia do Espírito, de ‘as leis do coração’. Leis estas para as quais o curso do mundo é necessariamente pervertido. Contra tal hipóstase da autenticidade, para a qual todo direito é apenas uma forma velada de violência, Hegel quer defender afirmações como: ‘A liberdade é apenas isto, conhecer e querer tais objetos substanciais universais como o direito e a Lei e produzir uma realidade (Wirklichkeit) que lhes é conforme : o Estado.'”
Ou ainda o que consta também na Fenomenologia do Espírito:
“O que se chama governo é apenas a facção vitoriosa, e no fato mesmo de ser facção, reside a necessidade de sua queda, ou inversamente, o fato de ser governo o torna facção e culpado”
Essas contradições presentes no seio do direito servem, em última instância, ao próprio direito. Hegel não nega que o caos e a barbaridade são reprováveis e por si mesmas devem ser evitadas, mas também não ignoram que esses levantes são muitas vezes os grandes responsáveis por devolver ao direito o seu papel de ordenador da boa vivência. Em termos hegelianos, é o Espírito que, reconhecendo que a liberdade que começou a ser produzida em seu seio não foi ainda atingida, rejeita aquilo que ele mesmo produziu apenas para novamente dar vida ao conceito em sua forma mais refinada e verdadeira. É justo dizer que dentro dessa análise, cada barbaridade social que evoca uma transformação social em que o Espírito se emancipa é o caminho para o fim de todas as barbaridades ao término da História, quando a mesma chegar ao seu fim e o Espírito estiver de posse total do mundo como a “casa de seu conceito”.
REFERÊNCIAS:
HEGEL, G. W. F.: Fenomenologia do Espírito, editora Vozes;
_______________: Princípios da Filosofia do Direito, editora Martins Fontes;
SAFATLE, V.: A Forma Institucional da Negação, revista Kriterion.
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