(Texto publicado originalmente em 3 de abril de 2020)
Certamente nada expõe melhor o pensamento e obra de H.P. Lovecraft do que as primeiras linhas de seu conto mais conhecido; O Chamado de Cthulhu (1928):
“Não há no mundo graça maior, penso eu, do que a incapacidade humana de correlacionar todos os conteúdos encerrados em sua mente. […] As ciências, cada uma delas seguindo uma direção diferente, até agora pouco nos prejudicaram; mas em algum momento, quando encaixarmos as peças separadas do conhecimento, teremos revelada uma aterrorizante visão da realidade e de nossa desditosa posição nesse panorama, e, diante disso, ou enlouqueceremos ou abandonaremos a luz para buscar abrigo na paz e na segurança da nova idade das trevas.”
Nascido em 1890 na cidade de Providence, Rhode Island (EUA), Lovecraft foi um revolucionário escritor da literatura de Terror. Em suas histórias, ele nos transporta para ambientes totalmente sensoriais e aguça nossos sentidos com suas descrições: sons, cores e odores não naturais saltam das páginas e impregnam a mente e corpo do leitor; é muito comum que a leitura seja interrompida por esforços mentais, numa tentativa de compor e imaginar suas criaturas, situações e ambientes insalubres.
Contudo, ainda que esse terror sensorial seja o que chama mais atenção num primeiro momento, ele não parece ser o cerne de sua obra, mas, ao contrário, diz respeito apenas à esfera da existência e da realidade que nós, humanos, habitamos, e através da qual, por ingenuidade – e muita má sorte – entramos em contato com manifestações físicas, fenômenos e seres ontologicamente diferentes de nós: nosso mundo “civilizado e científico” é apenas a fachada de um universo sobrenatural, e de um infindável embate entre forças cósmicas perversas.
No universo lovecraftiano o mal está sempre à espreita; é como uma consciência, sempre a maquinar meios de insurgir e expor sua presença. É preciso tomar cuidado ao andar por uma cidade que não se conhece, pois, ao dobrar uma esquina ou ao entrar em um beco de onde ecoam tambores e uivos de alguma cantoria profana, podemos acabar participando de uma trama superior maligna que utiliza o homem apenas como meio para alcançar seu fim. É preciso tomar cuidado com nossa curiosidade – sentimento tão infantil que, ainda assim, por muitas vezes nos domina e conduz por caminhos dos quais somos incapazes de retornar.
A ciência, “dona do conhecimento correto e verdadeiro, e dos métodos exatos para se alcançar o progresso” é vista em sua obra como a verdadeira causa de uma futura – mas não distante – decadência humana. O ímpeto científico que tenta a todo momento retirar o véu que encobre os mistérios do universo é o que causará nossa ruína, pois existem verdades que não devem vir à luz, mas, ao contrário, devem ser afastadas e afogadas nas ondas do oceano do esquecimento.
Por muitos momentos o enredo lovecraftiano beira à loucura – quando não a atinge. Muitos de seus protagonistas são arrastados, por força da fortuna, à situações sobre as quais não exercem controle algum. Muitos, ao final de suas narrativas, veem-se diante de um mundo com o qual não podem mais lidar; alguns, como os personagens de O Chamado de Cthulhu, ou dão fim à sua existência, ou aceitam a morte de bom grado; outros, com um pouco mais de sorte, como Thomas F. Malone, protagonista de O Horror em Red Hook (1926), terminam suas desventuras apenas com algumas sequelas psíquicas; e os mais afortunados, como o protagonista de A Cor que caiu do Céu (1927), apenas ouvem relatos de terríveis acontecimentos passados.
Lovecraft nos coloca em um jogo existencial: será mesmo que, após ter presenciado tais horrores, o melhor é dar – ou tentar dar – continuidade a vida? Ou será que o melhor é seguir os passos do anônimo protagonista de O Chamado de Cthulhu:
“A morte em si seria uma benção se ao menos apagasse lembranças. […] Vi tudo que o universo contém de horror, e mesmo os céus de primavera e as flores de verão podem ser um veneno para mim. Mas não creio que minha vida será longa. Assim como meu tio se foi, como o pobre Johansen se foi, eu também devo ir. Eu sei demais […] A repugnância aguarda e sonha nas profundezas, e a decadência se espalha sobre as titubeantes cidades dos homens.”
É claro que existem outros aspectos na obra de Lovecraft além dos citados, mas me parece que é nisto que ele concentra seu esforço: sua obra parece ser, em grande medida, um belo elogio da ignorância: os bastidores do universo são obscuros demais para a existência humana, e a ignorância se apresenta como uma bênção.
Quando chamados profanos surgem de nossos sonhos; quando estrelas caem no nosso quintal e músicas malditas ecoam pelas ruas da cidade, muitas vezes o melhor a fazer é não abrir a janela e se contentar com a vida banal, despretensiosa e sóbria do dia a dia.
Comments