No primeiro capítulo do livro The History and Philosophy of Astrobiology (“A História e Filosofia da Astrobiologia”, tradução livre), Erik Persson (2013, p. 29-49) questiona se há espaço para a filosofia na astrobiologia. Ele aponta que, na antiguidade, questões de astronomia caíam inteiramente no escopo da filosofia, e que foi só a partir do século XVI, quando Tycho Brahe transformou a astronomia numa ciência empírica moderna, que a atitude quanto à observação dos astros começou a mudar. Essa passagem da filosofia especulativa para a ciência empírica nos trouxe a visão moderna do sistema solar e o fim da cosmovisão aristotélica — lembrando que o advento das ciências empíricas modernas resultou no total abandono da física descritiva de Aristóteles. O último prego no caixão foi dado quando Newton publicou Os Princípios Matemáticos da Filosofia Natural, matematizando de vez o que antes era visto apenas como relações descritivas.
Esse desenvolvimento científico acabou impulsionando também um desenvolvimento tecnológico, ao ponto que, no século XX, a humanidade começou a realizar missões espaciais diversas. Persson afirma que, entre os cientistas, essa exploração foi majoritariamente liderada por físicos, alguns químicos e geólogos. Contudo ele escreve que recentemente tem surgido espaço para especulações mais concretas quanto à ideia de vida extraterrestre, o que acaba incluindo a biologia no jogo da exploração espacial, para além de eventuais pesquisas biológicas terrestres realizadas no âmbito dos atuais programas espaciais. Persson afirma que não é o trabalho dos filósofos especularem sobre questões que são melhor tratadas pelas ciências empíricas, mas que existem diversas questões ligadas à exploração espacial que têm clara natureza filosófica.
O autor faz a pergunta: seria a pesquisa astrobiológica um uso justificável de recursos? Afinal, alguns podem argumentar que temos problemas importantes demais no nosso planeta para perdermos tempo e recursos buscando vida em outros — é uma questão sobre o que valoramos no sentido econômico, sim, mas também é uma questão ética. A probabilidade de sucesso é ínfima, ainda que de fato exista vida fora da Terra. Porém, Persson contra-argumenta que não necessariamente os recursos não utilizados na busca por vida fora da Terra serão usados para outras coisas importantes, como resolver o problema da fome e da miséria. Além do que, a astrobiologia pode, como ciência, nos ajudar a entender a vida na Terra e, de forma indireta, nos auxiliar com problemas que enfrentamos. Ela também apela à nossa curiosidade, com desdobramentos existenciais importantes.
Então, o que é a vida? A resposta parece intuitiva, mas especialistas estão longe de terem uma resposta definitiva. O clássico exemplo do vírus ser considerado vida por alguns mas não por outros, é dado por Persson — os vírus se multiplicam e evoluem, mas eles não têm metabolismo próprio, algo que muitos consideram condição necessária para a definição de vida. Persson escreve que alguns consideram até programas de computador capazes de se replicar e se adaptar como sendo vida, embora isso seja bastante controverso. Para a astrobiologia é muito importante sabermos como definir o fenômeno vida por algumas razões: 1) precisaremos saber se o que (potencialmente) encontraremos no futuro será vida ou não, justamente para concluirmos se fomos bem sucedidos ou não; 2) para entendermos a transição da química para a biologia, precisamos saber exatamente o que é vida; 3) precisamos dessas definições para sabermos para onde olharmos e onde procurarmos no universo — por exemplo, através da análise de atmosfera de exoplanetas.
Persson então passa a tratar de algumas maneiras de se definir vida. Ele começa com a definição da lista, que conta com nossa capacidade intuitiva de reconhecer o que é vivo e ir contando cada espécie que encontramos. A desvantagem, segundo ele, é que essa lista nunca está realmente completa, sempre descobrimos novas formas de vida que antes desconsideramos. Depois, Persson trata da definição ostensiva, na qual apontamos exemplos dentro de categorias que queremos definir. Por exemplo: se quisermos saber o que é um livro, vamos numa estante e pegamos um exemplo. Livros diferem entre si, mas eles têm algo em comum. Contudo, a vida extraterrestre pode ser absurdamente diferente do que entendemos como vida. Seguindo, Persson trata da definição prototípica, que é similar à ostensiva, mas utiliza uma instância particular da categoria como modelo. Persson critica a definição prototípica da seguinte maneira: imagine utilizarmos labradores como nosso protótipo (quatro patas, cor preta, etc) de ser vivo; tal protótipo não serve, já que há outras coisas com quatro “pernas” que não são vida, como mesas, cadeiras, etc. E há uma imensidão de seres vivos que não se conformam com esse protótipo, provendo assim uma imensidão de protótipos diferentes.
Contudo, labradores, insetos e estrelas do mar possuem metabolismo. Isso nos leva à definição essencialista da vida, que parte do princípio que há alguma característica que constitui a essência do que é ser vivo. Acreditava-se que poderíamos isolar essa única característica — mas a ciência contemporânea fez cair por terra definições essencialistas da vida. Não há mais uma propriedade única que faz com que algo seja definido por vida. Identificar as propriedades necessárias que juntas formam a vida pode ser feito através da definição estipulativa, que afirma que cabe a cada um de nós definirmos da nossa maneira. Essa definição traz grandes problemas, especialmente para a astrobiologia. Por exemplo: se enviarmos uma missão espacial a outro corpo celeste para procurar vida, precisamos estar de acordo sobre o que estaremos procurando. Isso é necessário para escolhermos os instrumentos científicos necessários, e também para dizer se fomos ou não bem sucedidos na busca.
Identificar as propriedades necessárias que juntas formam a vida também pode ser feito através da definição operacional, que é similar à anterior, visto que não busca uma única definição correta, mas é baseada nos métodos que dispomos. Num determinado período X, temos os métodos Y para identificar o que é vivo ou não, enquanto que em X+100 temos os métodos Y+200 para identificar. Mas essa definição também é problemática: é estranho imaginarmos que a resposta para se sabemos ou não que um ente extraterrestre é vivo depende exclusivamente dos métodos tecnológicos que desenvolvemos na Terra. Persson parece ser bastante confuso na hora de elaborar essa definição — afinal, para detectarmos vida através da observação da atmosfera de exoplanetas, precisamos nos desenvolver científica e tecnicamente para termos a capacidade de detectarmos tais atmosferas e entender os dados que recebemos; sem esse desenvolvimento tecnocientífico, é simplesmente um fato que não seremos capazes de detectar (ou não detectar) vida fora da Terra.
Aqui Persson escreve que, se definirmos vida de uma forma que se encaixa em determinadas ferramentas humanas, ou de uma maneira que seja conveniente porém mais ou menos arbitrária, corremos o risco de estacionarmos numa definição que não explica por que é tão importante que saibamos o que de fato é vivo ou não, e que justifique a importância da busca por vida alienígena. O autor é cauteloso, mas podemos ter boas razões para não sermos tão cautelosos assim. Como ele mesmo demonstra ao longo das definições de vida que apresenta, a comunidade científica necessitará de um corte epistemológico na hora de entender o que é vivo e o que não é, ainda que o corte seja arbitrário e não necessariamente se encaixe em todas as instâncias. Isto é: ainda que o corte epistemológico não se encaixe perfeitamente com o corte ontológico que de fato ocorre no mundo natural entre a não-vida e a vida.
Por fim, temos a alternativa da semelhança familiar. De acordo com essa definição de vida, um conceito não é definido por propriedades necessárias e suficientes, mas por uma constelação de propriedades associadas com o conceito. Por exemplo, quando dizemos que algo está vivo, isso significa que ele tem um número dessas propriedades, e nenhum ser vivo possui todas elas. O autor conclui afirmando que alguns acreditam que devemos parar de considerar que algo é vivo ou não-vivo e tratar a vida como um espectro, uma questão de grau. Isso, no entanto, vai contra as intuições de muitas pessoas — além do que, tal definição pode gerar uma série de especulações contraproducentes na hora de investigarmos cientificamente a vida em outros corpos celestes — a discussão pode, por exemplo, enveredar para panteísmo, pampsiquismo, e outras questões que podem ser interessantes, mas não nos ajudarão a descobrir extraterrestres tão cedo através dos instrumentos da tecnociência moderna.
A discussão sobre o que é a vida vem da antiguidade, e tratá-la no âmbito da astrobiologia beneficia tanto a biologia quanto à filosofia. Persson levanta algumas questões filosóficas interessantes. Uma delas é: se estamos realmente sós, como saberemos? A resposta óbvia é “nunca”, visto que é impossível provar uma hipótese negativa. Contudo, ainda assim, ele afirma que a ciência contemporânea lida com regularidades, mesmo que exista a possibilidade de algo ser diferente. Persson dá o exemplo de jogarmos uma pedra de uma altura mil vezes. Quanto mais jogamos, mais certos estamos de que ela vai cair, e em qual velocidade, etc. Nada garante que ela não sairá voando na milésima e uma vez que a jogarmos, mas podemos estar bem confiantes de que não irá acontecer. O mesmo princípio pode ser aplicado na busca por vida fora da Terra. Para que possamos progredir num campo do saber, precisamos saber quando parar o experimento. Mas, segundo Persson, a questão sobre se estamos sós é especial de três maneiras: não é possível observarmos todo o universo em busca de vida; a questão é existencialmente importante; não temos um prazo para chegar a uma conclusão, principalmente uma conclusão negativa.
Persson então levanta a questão ética: como deveríamos nos comportar com seres extraterrestres? Ele conclui que não deveria haver, a princípio, uma grande diferença se o agente e o objeto de uma ação moral é deste ou de outro planeta. O que pesará na resposta serão outras coisas. Consideraremos toda e qualquer forma de vida, inclusive unicelular, como sendo dotada de um status moral (biocentrismo)? Ou somente consideraremos aqueles seres dotados de senciência, isto é, dotados da capacidade de ter sensações de dor, prazer, etc (sentientismo)? Ou, de forma mais exclusiva ainda, consideraremos somente humanos como possuidores de status moral (antropocentrismo)? Ou ecossistemas inteiros teriam estatuto moral (ecocentrismo)? Persson escreve que, se categorizarmos a vida alienígena como possuidora de um estatuto moral a partir de uma dessas definições, seremos plenamente capazes de aplicar as teorias éticas que já temos na Terra para decidir de que forma trataremos esses seres.
Como último ponto do texto, o autor trata da questão que diz respeito ao que devemos fazer com planetas inabitados. Temos obrigações para com esses mundos vazios? Um mundo rochoso sem vida pode ser interessante para geólogos, mas também para empreiteiros e mineradores — devemos preservá-lo de forma intocável ou explorá-lo economicamente? O quanto devemos preservar: tudo ou somente uma parte? Na Terra, há parques naturais que são preservados porque o valor de suas formações rochosas é amplamente reconhecido. Um bom exemplo disso é o Grand Canyon e o Monument Valley, ambos nos Estados Unidos. Outra questão que Persson levanta brevemente é se temos o dever de espalhar a vida nesses planetas inabitados, seja a vida humana ou formas de vida mais primordiais, como bactérias e outros seres unicelulares, para que essas formas primitivas iniciem um processo evolutivo próprio naquele planeta. Filósofos negativos, como Arthur Schopenhauer, certamente responderiam no negativo: não só não temos a obrigação de espalharmos a vida para fora da Terra, temos o dever de não fazê-lo, visto que tal ação possibilitaria a geração de incontáveis formas de vida sencientes, capazes de passar pelas mesmas misérias pelas quais a vida senciente passa na Terra há centenas de milhões de anos. Sobre o fenômeno da vida, Schopenhauer escreve:
Quando se representa, tanto quanto é possível fazê-lo de uma maneira aproximada, a soma de miséria, de dor e de sofrimentos de todas as espécies que o Sol ilumina no seu curso, deve-se concordar que valeria muito mais que esse astro tivesse o mesmo poder na Terra para fazer surgir o fenômeno da vida que tem na Lua, e seria preferível que a superfície da Terra, como a da Lua, se mantivesse ainda no estado de cristal. (SCHOPENHAUER, 2019, p. 30-31)
Referências:
PERSSON, Erik. Philosophical Aspects of Astrobiology In: DUNÉR, David et al. The History and Philosophy of Astrobiology. 1. ed. Cambridge, 2013. p. 29-49.
SCHOPENHAUER, Arthur. As dores do mundo. Tradução de José Souza de Oliveira. 1 ed. São Paulo: Edipro, 2019. p. 30-31. E-book.
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