(Ampulheta (detalhe), pintura de Raymond Douillet)
Escrito originalmente em 17 de abril de 2020.
O pensamento do filósofo franco-romeno Emil Cioran, apesar da sua singularidade, não existiu em um vácuo de ideias. Podemos argumentar que ele faz parte de uma tradição pouco reconhecida de pensadores negativos e, podemos sim dizer, pessimistas, como afirma o autor (professor da UCLA) Joshua Dienstag. Não existe uma escola de pessimismo filosófico propriamente dita, mas Dienstag argumenta—em seu livro “Pessimism: philosophy, ethic, spirit”—que podemos enxergar pensadores como Leopardi, Schopenhauer, Nietzsche, Unamuno, Camus e Cioran, como membros desta tradição em maior ou menor grau.
No livro “O sentimento trágico da vida”, Miguel de Unamuno afirma que a consciência do homem é uma doença. A filosofia de Cioran, que leu Unamuno, certamente amplifica essa conclusão e sentimento. Portanto, a consciência como doença é o ponto de partida para a filosofia do desespero de Cioran. Consciência do quê? Do tempo. A nossa razão é capaz de refletir sobre o que ela pensa e tem pleno entendimento de que há passado e futuro. A filosofia do desespero de Cioran afirma que tal capacidade não existe sem custos terríveis, como o conhecimento de que existimos e vamos, um dia, deixar de existir. Apesar de Cioran afirmar que não somos autômatos, operamos dentro das limitações intransponíveis do tempo—e sabemos disso. O futuro, portanto, não passa de um passado que ainda não chegou. Vamos todos perecer, assim como os outros seres vivos que habitam este planeta, e esse conhecimento faz com que nós retroativamente já não existamos.
Esse conhecimento também faz com que não haja sentido algum na História. A História, para Cioran, é uma adaptação que fazemos à nossa condição temporal: inventamos a História e recheamos ela de ilusões—religiões e ideais de toda espécie. Em alguns momentos, Cioran recorre ao uso de metáforas e mitologia para expressar seus pensamentos. Uma das expressões que ele utiliza para a condição humana é a “queda no tempo”. Nós somos seres que saímos da eternidade do nada e caímos no tempo ao nascermos: isto é, vivemos um presente que sempre nos foge e torna-se passado. Por conta disso, sempre depositamos nossas esperanças no futuro. Todos os outros animais vivem o agora—eles são adaptados para viver o presente, nascendo quase que prontos para a vida. Eles já têm o que precisam dentro de si. Os leões, zebras, insetos e peixes não precisam de cultura, escolas e aprendizado formal. Eles vivem o presente e seu medo da morte é meramente instintivo. Os animais, mesmo quando estão doentes, não possuem a consciência do tempo e o conhecimento da morte como nós—aliás, temos ciência disso até quando estamos saudáveis e contentes.
A filosofia do desespero de Cioran, no entanto, não enxerga dor apenas no mundo humano. Em determinados aforismos ele expressa como qualquer tipo de consciência teria se beneficiado da não existência, mesmo as consciências primitivas dos animais. No livro “Do inconveniente de ter nascido”, Cioran escreve: “É preferível ser animal do que homem, insecto do que animal, planta do que insecto, e assim sucessivamente. A salvação? Tudo o que diminui o reino da consciência e lhe vem comprometer a supremacia.” Na filosofia do desespero, o mundo ideal seria habitado por rochas—e, se houvesse vida, plantas. Então, o que podemos fazer? Qual é a resposta que o pensador Cioran dá para um diagnóstico tão ruim?
Em seus primeiros livros, Cioran inicia a exposição de sua filosofia, ainda em romeno. Tanto neste quanto nos outros livros que escreveu quando ainda vivia no seu país de origem, a Romênia, ele ainda dá uma resposta um tanto quanto vitalista para o vazio da existência humana. A admiração que seus escritos iniciais têm pelo êxtase espiritual dos santos cristãos é justamente isto: na percepção de Cioran, quando olhamos para o fenômeno do êxtase espiritual—sem nos atermos à capa dogmática da religião—o santo seria uma espécie de ser capaz de sair, ainda que por alguns instantes, do tempo ao qual nós todos fomos jogados. As figuras do santo e do místico deixariam a individuação e temporalidade humana nesses breves momentos. Contudo, depois da Segunda Guerra Mundial, na fase francesa da obra de Cioran, muito embora o diagnóstico do desespero existencial ainda seja o mesmo—podemos até dizer que o desespero torna-se ainda mais contundente no período francês—, Cioran não enxerga mais saída. Não há salvação para o nossa condição temporal, mesmo no êxtase dos santos. Tudo o que podemos tentar é uma arte de viver que se aproxima muito da resignação e asceticismo não-religioso proposto por Schopenhauer.
O pessimismo de Schopenhauer dá brechas para um escape, ainda que temporário, da condição em que somos jogados ao nascermos. Para Schopenhauer, a admiração da arte, principalmente da música, torna-se poderoso aliado dos homens que buscam anular a cruel vontade de viver, mesmo que por alguns instantes. O ideal do asceta—como, por exemplo, o monasticismo inspirado no cristianismo e no budismo—é melhor ainda para Schopenhauer: o asceta nega a vontade de viver e trabalha constantemente contra as paixões que nos tornam apegados a um mundo onde tudo é efêmero e a dor, ainda que adiada, é certa. O conhecimento que o asceta tem da negação da vontade de viver que ele pratica, mesmo quando é indireto—como no caso dos monges, que negam a vontade de viver por motivos religiosos e dogmáticos—, é uma espécie de vitória dentro da filosofia de Schopenhauer. Para Schopenhauer, o agregado de toda vida é causa de tanta dor que seria preferível, de acordo com ele, que a Terra fosse tão vazia de vida quanto a Lua. Mas, em Schopenhauer, quando negamos a vontade de viver, temos uma pequena vitória particular, que é o conhecimento direto ou indireto dessa negação. Para Cioran, nem uma pequena vitória é possível. Nada pode melhorar a nossa condição. Só podemos administrar o total desastre—em parte, nos isolando, como se fôssemos monges urbanos.
Como se vê, tanto a filosofia de Schopenhauer quanto a de Cioran promovem uma negação da vida. Em Cioran também vemos uma crítica contundente à procriação. Em “Do inconveniente de ter nascido”, ele escreve:
Estava sozinho num cemitério que dominava a aldeia, quando uma mulher grávida entrou nele. Saí de lá imediatamente, para não ter de olhar de perto aquela portadora de cadáver, nem de ruminar acerca do contraste entre um ventre agressivo e túmulos apagados, entre uma falsa promessa e o fim de todas as promessas.
Sua reprovação da reprodução não se restringia às mulheres e aos outros. Em seus cadernos, publicados postumamente, ele escreveu: “Com aquilo que sei, com aquilo que sinto, eu não poderia ter dado vida a alguém sem cair em total contradição comigo mesmo, sem ser intelectualmente desonesto e sem cometer um crime moral.” Tal sentimento não é uma condenação dos pais por serem pais, mas da condição humana que se perpetua cegamente, apesar da total impossibilidade de haver um sentido satisfatório para a vida e para os sofrimentos pelos quais passamos. Para o filósofo do desespero, teria sido melhor termos ficado na potencialidade. Novamente, em “Do inconveniente de ter nascido”, o filósofo do desespero escreve:
Se for verdade que através da morte voltamos a ser o que éramos antes de nascermos, não teria sido melhor ficarmo-nos pela pura possibilidade e não nos afastarmos dela? Para quê esse desvio, quando poderíamos ter permanecido para sempre numa plenitude irrealizada?
Tal sentimento ecoa na escrita de Samuel Beckett, escritor e dramaturgo irlandês. Em “Esperando Godot”, o personagem Pozzo fala que: “O nascimento ocorre com um pé sobre a cova, a luz brilha durante um breve instante, então é noite novamente.”
Resta a questão: se a vida é tão ruim, por que então não nos desfazemos dela através do suicídio? É verdade que tanto Cioran—quanto Schopenhauer antes dele—não condenam o suicídio. Pelo contrário: ambos afirmam em suas respectivas obras que nenhuma igreja ou instituição civil jamais deu um argumento válido contra o suicídio. Contudo, por razões diferentes, eles não o consideram a melhor alternativa. Para Schopenhauer, o suicida, ao matar-se, busca assassinar dentro de si a vontade de viver—mas a vontade de viver é o motor metafísico que permeia toda a realidade. O suicídio não nega a vontade de viver, o asceticismo sim. Já em Cioran, por conta de seu ceticismo em relação à verdades absolutas, não encontramos o alento do conhecimento metafísico, portanto, segundo ele, o suicídio pode até ser uma alternativa, mas ele não é necessário, nem eficaz. Na obra “Breviário de decomposição”, ele escreve como o suicídio é uma espécie de tesouro ao qual todos nós temos acesso, mas que podemos escolher passar a vida inteira sem usá-lo. O problema, para ele, é que morrer não é o mesmo que não ter nascido. Após nascermos, o estrago já foi realizado e o suicídio não muda isso—por essa razão, matar-se torna-se apenas mais um ato fútil contra nossa condição. Em um de seus aforismos mais famosos, Cioran afirma que: “Não vale a pena matarmo-nos, visto que nos matamos sempre demasiado tarde.”
A obra de Cioran expressa uma filosofia ácida, niilista e pessimista, que nega o valor da vida, algo que pode parecer controverso à primeira vista—ou à terceira, quarta, milésima… Entretanto, aqueles que o lerem devem ter cautela e atenção, pois essa negação não é uma homenagem ou incentivo à morte e ao suicídio, apesar dele não julgar o ato do ponto de vista de uma moral vitalista. A filosofia do desespero nega a vida, sem desejar a morte. Para concluir, nas palavras do próprio pensador:
Nós não corremos em direção à morte; fugimos da catástrofe do nascimento, agitamo-nos como sobreviventes que procuram esquecê-lo. O medo da morte é apenas a projeção no futuro de um medo que remonta ao nosso primeiro instante. Repugna-nos, claro está, chamar flagelo ao nascimento; não inculcaram em nós que era ele o supremo bem, que o pior se situava no fim e não no início da nossa carreira? O mal, o verdadeiro mal, está porém atrás, e não à nossa frente. Foi isso o que escapou a Cristo, foi isso o que Buda compreendeu: “Se três coisas não existissem no mundo, ó discípulos, a Perfeição não nos apareceria no mundo…”. E, antes da velhice e da morte, ele coloca o facto de nascermos, causa de todas as enfermidades e de todos os desastres.
Bibliografia:
BECKETT, Samuel. Esperando Godot. [s.l.]: [s.n.], [201-]. Tradução de Renato Ciacci. Disponível em: https://comumlugar.files.wordpress.com/2008/07/samuel-beckett-esperando-godot.pdf. Acesso em: 5 maio 2019.
CIORAN, Emil. Breviário de decomposição. Rio de Janeiro: Rocco, 1989. Tradução de José Thomaz Brum.
______. Cahiers, 1957-1972. Paris: Gallimard, 1997.
______. De l’inconvénient d’être né. Paris: Gallimard, 1990.
______. Écartelement. Paris: Gallimard, 1990.
______. Exercícios de admiração. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. Tradução de José Thomaz Brum.
______. História e utopia. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. Tradução de José Thomaz Brum.
______. Le chute dans le temps. Paris: Gallimard, 1990.
______. Le mauvais démiurge. Paris: Gallimard, 1992.
______. Silogismos da amargura. Rio de Janeiro: Rocco, 1991. Tradução de José Thomaz Brum.
UNAMUNO, Miguel de. O sentimento trágico da vida. Lisboa: Relógio D’água, 1988. São Paulo: Martins Editora, 1996.
PECORARO, Rossano. Cioran, a filosofia em chamas. 1. ed Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004. v. 1. 247p.
SCHOPENHAUER, Arthur. As dores do mundo. São Paulo: Edipro, 2014. Tradução de José Souza de Oliveira.
______. O mundo como vontade e representação. São Paulo: Editora Unesp, 2015. Tradução de Jair Barbosa.
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