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  • Fernando Silva

A revolução metafísica de Espinosa


Texto escrito originalmente em 5 de junho de 2020


Benedito de Espinosa, também conhecido como Baruch de Espinosa (1632-1677) foi um gênio e com certeza um dos grandes pensadores da história da filosofia; um racionalista do século XVII que viveu durante a chamada Filosofia Moderna. O intuito desse artigo é demonstrar de que forma Espinosa operou sua reforma metafísica, centralizado no conceito de substância.


O título completo da sua obra principal, a Ética, no mínimo causa uma estranheza: “Ética demonstrada segundo a ordem geométrica, e dividida em cinco partes, nas quais são tratados: I. Deus; II. A natureza e a origem da mente; III. A origem e a natureza dos afetos; IV. A servidão humana ou a força dos afetos; V. A potência do intelecto ou a liberdade humana”. Ela assemelha-se a um modelo racionalista típico da primeira modernidade, o século XVII (conhecido como século de ouro), onde muitos pensadores buscam reformar a metafísica, pois esta nova metafísica deveria levar em conta os progressos das ciências exatas, particularmente da física, astronomia e mecânica. Então, Espinosa é um autor que combate a metafísica tradicional que dominou o Ocidente durante muitos séculos: a aristotélica das causas finais. Para Aristóteles, a matematização da natureza é inviável, primeiramente porque é um absurdo e posteriormente, um sacrilégio. Pensar no físico para Aristóteles é somente possível através das quatro causas (eficiente, material, formal e final) que esgotam o quadro dinâmico dos movimentos e das mudanças no mundo sublunar. Já para Espinosa, as causas finais não passam de ilusões humanas. E é justamente isso que alicerça algumas questões problemáticas que encontramos durante sua obra.


Isso é perceptível já no título da primeira parte da Ética, denominado Deus. Para articular seu sistema racionalista (construído em definições, axiomas e proposições), Espinosa parte de Deus, que segundo o mesmo, é aquilo que é mais evidente e simples, o que é contra-intuitivo, pois ele afirma partir do mais imediato. O que ocorre na verdade é que ele não parte de Deus enquanto ser transcendente, mas sim de uma concepção semelhante à escolástica, da causalidade como causa de si, que é a primeira definição:

“Por causa de si compreendo aquilo cuja essência envolve a existência, ou seja, aquilo cuja natureza não pode ser concebida senão como existente”

Ao lembrarmos-nos de Aristóteles, o mesmo afirma na Metafísica que o Ser se diz de muitas maneiras, onde cada uma dessas maneiras de dizer o Ser corresponde a uma definição específica, e cada uma dessa definição específica corresponde a uma substância. Com isso, existem milhares de substâncias. Essa visão influenciará toda a metafísica do período medieval, contudo alicerçado sobre a teologia cristã, o conceito de substância se baseia no conceito de criador e criatura. Espinosa vai além; ele vai juntar as definições clássicas e produzir diferenças entre elas. Para ele, a única forma de resgatar Deus é definindo ele como existência, assim como a única maneira de resgatar a substância e, portanto, a Metafísica será dando à substância a definição da causa de si, portanto, da existência em ato. Ou seja, só há uma substância. A substância não é de Deus, ela é Deus.


Ou seja, substância é aquilo que a natureza não pode ser concebida senão existente. O que ocorre então é uma divindade da existência: Espinosa não vai demonstrar a existência de Deus a partir do conceito de Deus; para Deus existir, ele tem que ser a existência. A coisa mais imediata e gratuita que existe é a existência; sua explicação é que é apenas um fato. Logo, o conhecimento verdadeiro racional compreende ver o que se vê, onde demonstra-se a existência pela existência. Logo em seguida, nas proposições dois e três do primeiro livro, Espinosa diz que caso existam coisas que realmente não possuem nada em comum no mundo, nenhuma dessas coisas podem ser causa das outras coisas. Assim coisas que não possuem nenhuma interseção não estão incluídas numa relação causal. Portanto, tudo o que existe tem de ser incluído nessa existência. Em outras palavras, cada ser particular é uma parte da existência, onde todos os seres possuem algo em comum: A existência. Isso significa que somos todos parte de Deus. O que é revolucionário aqui é a única forma da substância ser possível de ser sustentada lógico-metafisicamente é se for sinônima de existência. Toda Metafísica que se afasta daquilo que é em ato está delirando, segundo Espinosa.


De acordo com a proposição dezessete do primeiro livro, Deus age de acordo com sua causalidade natural. Portanto, Deus, Existência, Natureza e Substância são sinônimos e causa de si. Deus, isto é, Natureza, isto é, existência, isto é, substância age exclusivamente pelas leis de sua natureza e sem ser coagido por ninguém. Logo, se Deus age de acordo com as leis da natureza, aparentemente é uma negação de sua liberdade, quando na na realidade, negar liberdade em Deus não significa negar sua potência, mas sim afirmar o que ele é.


Diante disso, Espinosa parte para conceitos metafísicos clássicos, como modo , por exemplo, cujo-o qual compreende como aquilo que existe em outra coisa, por meio do qual é também concebido. Isso significa dizer que tudo aquilo que existe é um modo de Deus. Uma cadeira é parte de Deus, uma fruta é parte de Deus, um cachorro é parte de Deus, o homem é parte de Deus. Podemos imaginar que m sua época, isso foi um escândalo. Afirmar que o homem não é livre, mas sim determinado pela natureza, um dos inúmeros efeitos da causa absoluta que a existência é significa dizer que o homem não poder desobedecer a Deus, mesmo querendo. Há assim uma imanência divina: Deus existe necessariamente contanto que ele exista como forma de existência aqui e agora. Apesar dessa exaltação do individualismo, o conceito de livre-arbítrio não existe no sistema espinosano. O homem não é uma vontade-livre de obedecer ou desobedecer a mandamentos que seriam uma pretensa vontade de Deus, o homem não é uma substância; não é causa de si, da existência. Ser um modo então é ser uma maneira de ser da substância, pois a existência nos é emprestada por determinado tempo. O homem é um grau de potência de agir na natureza. O ser humano é passivo e também é afetado por outros modos que o determinam, onde quanto mais conhecemos os modos que nos afetam, somos capazes de compreender nossa existência natural, ou seja, divina.


Atributo é um outro conceito metafísico com o qual Espinosa também mexe. Tradicionalmente é aquilo que faz parte da substância que o intelecto percebe como constituindo a essência. Já para Espinosa, de acordo com a quarta definição do primeiro livro, atributo é aquilo que qualquer inteligência percebe daquilo que a existência tem de ser para poder ser verdadeira, sendo assim perceptível duas constantes irredutíveis uma a outra: A primeira dimensão da vida é física, como extensão espacial, enquanto que a segundo dimensão da vida é o pensamento, que é material. A vida como substância pensa (o pensamento não é reservado ao homem) e sente (possui um corpo, que é tudo). Assim, por exemplo, o homem é uma parte de Deus pensando sobre as outras partes de Deus; uma auto-reflexão divina, onde o homem é uma forma em si de Deus e um modo de pensar em si de Deus. Portanto, existem dois atributos, porém eles nunca se comunicam, para que isso ocorresse, deve ser necessário existir duas substâncias. O que ocorre de acordo com Espinosa é que os atributos são a essência verdadeira da substância, onde os modos são manifestados pelos atributos. Há uma percepção da essência da existência de acordo com os atributos, onde a verdade é físico-intelectual e ocorre paralelamente nos dois atributos: Agimos na realidade com o nosso corpo enquanto que no intelecto agimos nas ideias. Não há hierarquia entre mente e corpo. Existem ideias de ideias, sendo este inclusive o motivo de erros. Da mesma maneira, existem corpo de corpo. É a mesma vida que exprime-se de duas perspectivas substancias. Um atributo é uma forma substancial.


Podemos pensar que isso é muito teológico para ser uma reformulação metafísica à partir da revolução científica. Tomemos cuidado e examinemos atentamente; apesar de utilizar conceitos teleológicos clássicos, Espinosa opera uma transformação radical destes para adequar em seu sistema racionalista em que tudo é necessário; onde há uma causalidade natural que é o motivo de ordem e conexão. Ele vai à contramão de toda teologia, toda religião da transcendência, ao afirmar que a existência existe. Pois para tais religiões, este mundo inexiste se comparado ao outro mundo; a eternidade. Por isso que tanto a negatividade quanto a possibilidade inexistem nessa Ontologia Naturalista – está tudo determinado. Deus é a única substância existente enquanto é natureza absolutamente infinita. Isso tudo implica na seguinte concepção da realidade: é uma totalidade unicamente afirmativa e desprovida absolutamente de contradições.


REFERÊNCIAS:

SPINOZA, Benedictus. Ética.  3ª ed., 2. reimp – Belo Horizonte : Autêntica Editora, 2016.

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