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  • Fernando Silva

A relação entre techné e episteme na Modernidade


Texto escrito originalmente em 4 de outubro de 2020


Com a Revolução Científica Moderna no século XVI, os conceitos de techné e de episteme modificaram-se radicalmente em relação aos períodos anteriores, pois conforme afirma o filósofo Alexandre Koyré em Estudos de história do pensamento científico:

A Modernidade caracteriza-se por uma mudança paradigmática intelectual.

Enquanto que anteriormente, o conhecimento sobre a realidade baseava-se no modelo aristotélico-ptolomaico, cujo ponto central era a imutabilidade desta em virtude do processo de conhecer ser fundamentado pela contemplação da natureza, na Modernidade isso colapsou, graças ao processo demonstrativo de matematização dos princípios naturais e da geometrização do espaço por Isaac Newton – processos esses que antigamente eram considerados sacrilégios. Assim, iniciou-se a dissociação entre a teleologia, isto é, da Metafísica clássica e teórica com a ciência, implicando necessariamente que à partir desse momento, a humanidade era quem enquadrava o processo de conhecimento e, portanto, era capaz de tornar-se senhora da natureza e instrumentalizá-la. Em outras palavras, a ciência moderna inovou ao obter um prisma valorativo, transmigrando a ondem do conhecimento de ontológica para epistemológica e a técnica passando a ser configurada como um instrumento, por ser a comprovação do conhecimento prático dessa dominação sobre a natureza.


Entretanto, isso trouxe problemas, pois todo o conhecimento anterior, aparentemente detentor da verdade, foi deslegitimado, levando a uma revisão sistemática de qualquer verdade que tentava legitimar-se. Assim, surgiram diversos sistemas e concepções de conhecimento que visavam identificar e demonstrar o que é a verdade, sendo a metodologia do filósofo e cientista René Descartes uma delas. Ele buscou caminhos, ou seja, métodos para encontrar uma verdade que resistisse a qualquer dúvida e indagação, ao compatibilizar dois conceitos aparentemente contraditórios: progresso e verdade.


Segundo Descartes, tais métodos encontram-se na matemática, por esta ser exata. Nela, há dois elementos que são fundamentais, a saber: a clareza, por ser evidente em nossas mentes e a distinção, feita a partir das evidências, que separa uma das outras. O processo demonstrativo, tão importante para a ciência moderna, consiste segundo ele justamente da passagem de evidências primárias para evidências demonstradas. Assim, Descartes redige no livro IV do Discurso do Método regras necessárias para direcionar nossa mente a chegar a verdades. São elas a intuição evidente, que é a necessidade de confiar em evidências claras e distintas; a decomposição analítica, uma divisão das evidências representativas em quantas partes forem necessárias para analisá-las; a reconstrução sintética, uma síntese por via de um processo dedutivo das bases que constituem as evidências; e a verificação por exaustão, uma recapitulação geral. Esse esquema evidencia a estratégia cartesiana de demonstrar que não há conhecimento antes do sujeito do conhecimento, assegurado pelo cogito. A realidade encontra-se no sujeito pensante que a conhece, consciente de si e que a apresenta através de conceitos e ideias que a representam.


Apesar de todas as críticas existentes ao modelo cartesiano, toda concepção de ciência moderna passa por ele, seja por meio de aperfeiçoamentos de seu sistema ou negação dele. É inegável sua importância para o desenvolvimento de teses e sistemas de explicação da realidade essencialmente físico-matemáticos que tornam a teoria em prática e assim possibilitaram o surgimento da noção de experimento científico, pois a técnica é transpassada pela teoria e apreendida enquanto elemento fundamental do processo científico para a criação de instrumentos científicos justamente através da exatidão e precisão matemática. É por isso que elas não resultam de uma necessidade prática, mas teórica. Em outras palavras, a criação de novas técnicas gera novos acontecimentos científicos e reformulam o conhecimento; com ela, a ciência moderna passou a ser um produto de uma atividade feita por instrumentos de precisão matemática e controle das condições experimentais. Conforme salienta Koyré em Do mundo fechado ao universo infinito:

É através de instrumentos de medição, como o telescópio, por exemplo, que a precisão encarna-se no mundo fechado, é na construção dos instrumentos científicos que afirma-se o pensamento tecnológico por serem resultado de uma teoria materializada.

O mundo do devir, do modelo aristotélico-ptolomaico era o mundo da imprecisão. É a ciência enquanto teoria responsável por conduzir o experimento científico. Entretanto, devido a teoria comandar a experimentação, a produção de instrumentos científicos não garante a compreensão dos objetos da realidade, mas a sua própria construção representacional. Por ser uma teoria materializada, a essência dos instrumentos científicos é racional. A ciência não descreve o mundo, mas o produz, na medida em que age na natureza ao matematizá-la. Dessa forma, o instrumento científico não conflui-se à experiência, mas modifica-a por ser uma objetificação.


Bibliografia:

DESCARTES, René. Discurso do Método. São Paulo: Ícone, 2017.

____________. Princípios da Filosofia. Lisboa: Edições 70, 1997.

KOYRÉ, Alexandre. Do mundo fechado ao Universo infinito. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006.

__________________. Estudos de história do pensamento filosófico. Rio de Janeiro: Forense universitária, 1991.

__________________. Estudos de história do pensamento científico. Rio de Janeiro: Forense universitária, 2011.

KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 2009.

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