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  • Foto do escritorSarah Santos

A mentira organizada e a pós-verdade: contribuições arendtianas para o presente


World Construction Kit de Julien Pacaud


Philip K Dick afirma em certo momento que “A realidade é aquilo que, quando você para de acreditar, não desaparece”. Entretanto, a ação guiada pela irrealidade possui impactos sobre a trama fatual. Com isto, para além dos livros de ficção, há momentos da história em que foi possível perceber como a desconexão com a realidade dos fatos influiu sobre contextos sociopolíticos: esses são os casos dos regimes totalitários do século XX e o surgimento do fenômeno da pós-verdade na década de 2010.

Apesar da aparente distância, é possível compreender parte deste último processo a partir de análises feitas sobre os totalitarismos, e aqui entram as reflexões da filósofa alemã Hannah Arendt. Arendt em seu texto “Verdade e Política”, originalmente publicado em 1967, busca compreender como a relação entre esses dois campos se deu ao longo do tempo, e sua premissa é de que nunca foi uma relação pacífica, mas desde sempre conflituosa, e, com o surgimento dos regimes totalitários, assumiu novos contornos.

A filósofa não nega que as mentiras sempre foram utilizadas como ferramentas políticas: Platão, na República, diz que a mentira deve ter seu uso restrito aos chefes da pólis em benefício dessa (Cf. PLATÃO, A República, 389b-c); e Maquiavel, no Príncipe, considera politicamente válido lançar mão de quaisquer ferramentas de acordo com as circunstâncias, que em muitos casos seriam consideradas, do ponto de vista moral, vícios (Cf. MAQUIAVEL, O Príncipe, Cap. XV). E, levando isso em conta, ela realiza uma distinção entre a mentira política tradicional e a mentira organizada totalitária.

A mentira tradicional, segundo ela, consistia somente na ocultação de determinados elementos, era utilizada como meio de manutenção política e dirigia-se aos inimigos. Em contraposição, a mentira organizada não somente nega, mas também visa destruir aquilo que nega; tende a iludir o enunciador da mentira – ou seja, há um alinhamento entre a crença do enunciador e o seu discurso – e os seus aliados – a quem, inicialmente, deveria proteger –; e, à medida em que ocorrem furos no discurso, surgem outras mentiras a fim de conferir plausibilidade; e, finalmente, de tantas modificações em relação aos fatos e à própria mentira inicial, resulta uma nova trama fatual que nada condiz com a realidade:

A tradicional mentira política, tão proeminente na história da diplomacia e da arte política, referia-se, quer a segredos autênticos, a dados que nunca se haviam tornado públicos, ou a intenções que, de qualquer maneira, não possuem o mesmo grau de segurança que fatos acabados (...).
Em contraste com isso, a mentira política moderna lida eficientemente com coisas que em absoluto constituem segredos, mas são conhecidas praticamente por todo mundo. (ARENDT, 2016, p. 242, epub)

Posto isto, é importante ressaltar que, para Arendt, as verdades fatuais, as quais a mentira organizada ataca, são políticas por natureza e surgem a partir da vida comum dos homens, de suas interações e, por isso, informam um pensamento político (e um pensamento político que, por si só, é representativo pressupõe muitas opiniões, que para serem válidas devem ser informadas por fatos).

A fragilidade dessas verdades se deve, primeiramente, a que não se pode provar a sua falsidade por contradição, porque, por se tratarem do resultado de negócios humanos, sua matéria constitutiva são os acontecimentos; e, por isso, há a dificuldade de recuperação de seu conteúdo caso ocorra a supressão de suas fontes documentais, correndo o risco de serem suprimidas definitivamente – diferentemente das verdades matemáticas, por exemplo, cujos princípios e axiomas estão acessíveis a qualquer mente humana, sendo impossível suprimi-los eternamente somente com a “queima de livros”, como Arendt comenta. Desta forma, o desenvolvimento da mentira organizada e deliberada de uso político objetiva a negação da realidade própria aos fatos e acaba por substituí-la por ficções ideológicas que não possuem mais entre si um mundo compartilhado. Em suma, as verdades fatuais são contingentes, não possuem razões evidentes e conclusivas e, portanto, estão mais suscetíveis à negação, dissimulação e distorção de acordo com os interesses políticos em jogo.

Assim, uma das implicações da mentira organizada é a redução tanto da verdade quanto da própria mentira ao status de mera opinião e, consequentemente, a impossibilidade de conciliação e a destruição do mundo comum – mundo comum este que depende da pluralidade de opiniões e da possibilidade de diálogo e debate delas:

É uma nítida tentativa de alterar o registro histórico, e, como tal, uma forma de ação. O mesmo ocorre quando o mentiroso, sem poder para fazer com que sua falsidade convença, não insiste sobre a verdade bíblica de sua asserção, mas pretende ser esta sua “opinião”, à qual reclama direito constitucional. (...) O apagamento da linha divisória entre verdade e opinião é uma das inúmeras formas que o mentir pode assumir, todas elas formas de ação. (ARENDT, 2016, p. 240, epub)

Com tais elementos postos, é possível partir para a reflexão acerca do fenômeno da pós-verdade, eleita a palavra do ano em 2016 após a eleição de Trump e as discussões acerca do Brexit. De acordo com o dicionário Oxford (apud Bucci, 2018, p. 22), pós-verdade “qualifica um ambiente em que os fatos objetivos têm menos peso do que apelos emocionais ou crenças pessoais em formar a opinião pública.”. Isto é, os discursos e opiniões políticas não possuem mais referência alguma aos fatos, mas aos apelos emocionais e na capacidade de se reforçar crenças pessoais.

O advento das redes sociais propiciou uma nova plataforma para encontros, organização e debates acerca de assuntos caros política e socialmente. Entretanto, o funcionamento algoritmizado contribui ainda mais para o reforço de crenças pessoais, uma vez que, à medida que o usuário fornece dados para os sites e aplicativos, estes mesmos devolvem ao usuário propagandas personalizadas e conteúdos semelhantes aos consumidos e compatíveis ao perfil do usuário – ou seja, usuário e plataforma se retroalimentam. Desta forma, ocorre uma radicalização maior de opiniões previamente formuladas, por não haver contrapontos, e ainda impulsiona-se o surgimento de “bolhas”.

Os indivíduos que constituem tais bolhas compartilham entre si posicionamentos políticos, gostos estéticos, líderes e modos de vida em comum e tendem a dialogar e compartilhar suas opiniões somente entre si, havendo pouca possibilidade de confronto e discordância, não há dissenso. Bucci coloca que:

Sobre o factual, predomina o sensacional – daí o sensacionalismo. Sobre o argumento, o sentimento ou o sentimentalismo. (...)
Na era das redes sociais, o indivíduo se encontra encapsulado em multidões que o espelham e o reafirmam initerruptamente – são as multidões de iguais, as multidões especulares, as multidões de mesmos. Vêm daí as tais “bolhas” das redes sociais, cujo traço definidor é a impermeabilidade ao dissenso, a ponto de uma comunidade de uma determinada bolha mal tomar conhecimento da outra. (BUCCI, 2018, p. 28)

Essa incapacidade ao dissenso nada mais é do que a função contrapolítica sobre a qual Arendt alertava: as bolhas impedem o compartilhamento do mundo comum, o diálogo, o debate etc. Pode-se compreender, então, o fenômeno da pós-verdade como um desdobramento da mentira organizada totalitária, que antes havia espaço no rádio e jornais e, agora, tem seu espaço nas redes sociais, com a vantagem da personalização das informações entregues aos seus usuários.

Como manifestações internas à pós-verdade, podemos colocar as fake news e os negacionismos. Estes últimos são inclusive anteriores ao fenômeno, mas com os novos contornos sociopolíticos, têm sido utilizados como uma das ferramentas de produção deliberada de ignorância, tal como as fake news – os vovôs negacionistas da crise climática abraçaram os antivacinas, que, por sua vez, adotaram os terraplanistas; e todos espalham desinformação. Esse incentivo à ignorância, que toma forma por meio de discursos como esses, serve à impressão de que há um debate sendo realizado a partir dos mesmos termos e critérios, mas que, na verdade, apenas um lado realmente está debatendo, e ao outro só interessa a crença de que um debate (cf. LATOUR, 2014).

Deste modo, as fake news surgem como o expoente da pós-verdade e assumem o formato de notícias, mas são definitivamente fraudulentas e contêm (des)informações intencionalmente fabricadas. Não se confundem com má-apuração ou boatos comuns, mas têm por função e objetivo a contrapolítica, além de serem utilizadas para acusar os meios tradicionais de comunicação de desonestidade e fraude, como se as plataformas digitais fossem um terreno neutro e não empresas privadas com interesses socioeconômicos próprios, que lucram também com a circulação delas:

Também são perversas as relações de propriedade das novíssimas empresas ditas “de tecnologia” ou de “inovação”, como Google e Facebook. Essas duas são monopólios globais. Podemos vê-las, também, como um duopólio mundial que controla a maior parcela do tráfego das pessoas comuns na internet. (...) Discursos contra alegados monopólios da informação, que costumam ter como alvo, no Brasil, a Rede Globo, difundidos imensamente no Facebook, não emitem o menor sinal de que se deram conta do monopólio mundial exercido pelo próprio Facebook. (BUCCI, 2018, p. 29)

Com isso, as fakes news, como faceta da pós-verdade e como desdobramento da mentira organizada como princípio de ação política, se mostram como ponto importante na maneira com que os sujeitos têm sido impactados politicamente, uma vez que impedem o elemento mais primordial na elaboração das opiniões: os fatos, as informações mais básicas do que nos acontece, daquilo que é importante para nós enquanto humanidade e para aquilo que queremos construir enquanto tal.

Diante do exposto, para Arendt (2016, p. 230, epub): “A liberdade de opinião é uma farsa, a não ser que a informação fatual seja garantida e que os próprios fatos não sejam questionados.”. Quer dizer, princípios como liberdade de opinião, pluralidade, democracia etc. só podem ser plenos caso haja uma garantia do acesso aos fatos em sua integridade, sem o assédio do poder. E, para tanto, ela estabelece que o campo da verdade é extrapolítico, isto é, é independente do poder, pois nele os fatos devem ser apurados, investigados e difundidos; e este trabalho deve ser realizado pelo filósofo, cientista, historiador, artista, juiz, descobridor de fatos, testemunha, jornalista, para só então tais fatos serem apropriados politicamente a fim de se debater opiniões e construir um mundo comum. Senão, se a verdade ficar a cargo da política, estaremos sujeitos ao totalitarismo, ou seja, ao pensamento único.

Desta maneira, é necessário preservar os locais de apuração da verdade a fim de preservar o domínio público em que deve ser debatido aquilo que nos importa enquanto humanidade e diz respeito ao nosso futuro comum, além de objetivar o combate a essa tendência antipolítica que se faz presente por meio da pós-verdade e seus tentáculos.



Referências bibliográficas


ARENDT, Hannah. Verdade e Política. In: AREDNT, Hannah. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2016. Epub.



BUCCI, Eugênio. Pós-política e corrosão da verdade, Revista USP, São Paulo, v. 1, n. 116, p. 19-30, janeiro/fevereiro/março de 2018. Trimestral.



LATOUR, Bruno. Para distinguir amigos e inimigos no tempo do Antropoceno. Revista de Antropologia, v. 57, n. 1, p. 11-31, São Paulo, 2014.



MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. Rio de Janeiro: Ideia Jurídica, 2014.



PLATÃO. A República. Tradução e notas de Maria Helena da Rocha Pereira. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1983.



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